domingo, 20 de maio de 2018

E, de Edimilson de Almeida Pereira




Por Adriane Garcia

Para falar do livro “E”, de Edimilson de Almeida Pereira, podemos começar pela bonita edição (ed. Patuá). O volume de 128 páginas intercala poemas com imagens do artista plástico Antônio Sérgio Moreira. As imagens, coloridas, vibrantes e fortes destacam, do corpo humano, a cabeça (orí).

Orí é também o primeiro poema do livro, se considerarmos que Oráculo: “para sair de tua morte,/ morre.” é a abertura de “E”, a sua apresentação, enigma sob o qual a linguagem se pronunciará.

Poesia de grande refinamento, feita com técnica, burilamento e inteligência, Edimilson alia esses predicados a uma sensibilidade direcionada principalmente para a solidariedade. A poesia de “E” está falando ao outro, está de mãos dadas com o outro; não por acaso, muitas vezes, levanta questões da ética e da política, notadamente, as que se relacionam com o racismo, a diáspora africana, o genocídio da população negra brasileira.  A forma como desloca seus vocábulos provoca ambivalências que só enriquecem a leitura, numa dança de sentidos:

                 DAN

não    me     preocupar por mim
                                         letal

não  me preocupar com o outro
                         que há em mim
                                        igual

não  me preocupar com o outro
                                      imoral

não   me  preocupar   com o eu
que espera no outro – um sinal

Orí, a cabeça, a mente, a inteligência, rege o desenvolvimento de “E”. O poeta evoca a linguagem como fenômeno vital para nos fazer humanos e também para nos deixar à deriva, nossa condição de conflito. É pela inteligência, pela capacidade de linguagem que o poeta chama à autonomia do sujeito, à defesa de uma identidade única e particular, contra todo sentimento de manada. “E” é letra de um rito de origem, o primeiro sinal gráfico para o poeta se iniciar na escrita do próprio nome: Edimilson. O ato de escrever é ato de libertação e resistência, feito com ciência e fúria. A palavra (a poesia de Edimilson), como o metal, é moldada na forja, sob intuição, fogo e arte, mas é preciso, e ele mesmo nos mostra, mais que técnica: é preciso dar a ver ao leitor algo que já há no poema, mas que só o leitor poderia acrescentar; algo que só existe quando o leitor declara para si sua existência. Não só o “logos”, mas o “punctum” conceituado por Roland Barthes, o ponto que fere e punge, alegra e anima. É a própria subjetividade do leitor, pessoal e intransferível, naquilo que o toca, que trará ao poema seu maior sentido. Desse modo, o poema é também doação.

 “Ouve ainda a voz
do mor-
to: “dai a cada um
a sua altura.”

As chaves de leitura dos versos de “E” se ampliam, na medida em que o autor sabe usar o poder da sugestão. Os poemas, em sua maioria, dizem de um ser inteiro, integral, que não abre mão de sua singularidade. A adversidade aparece inúmeras vezes, acompanhada dos signos da luta: língua, apneia. Seus temas são os temas mais variados que ocupam seu mundo, seu tempo, sua ancestralidade africana: a poesia, a música, a amizade, a saudade, o sentimento de ser estrangeiro,  voduns e orixás, desigualdade social, exploração, discriminação racial e de gênero, a tensão que é viver consciente, compreender essa condição de ser aquele que duvida.  

Recorrentemente, aparece nos poemas de “E” a reflexão sobre o significado da palavra em nossas vidas. Essa valorização faz com que o leitor possa depreender que também há, nos poemas de Edimilson, uma exigência pelo direito universal à palavra e à voz, como condição primeira para a liberdade.

Um livro excelente, de muita beleza.

Língua

Um cão divide a praça

: às suas costas
Um câncer       o trópico

: à sua cabeça
Um laser          o espólio

Um cão decide a praça

: em seus ossos
e cérebro

: em sua carne
e raiva

apneia – a flor do lácio

Cantilena

O ofício da mulher antiga
era ser avó toda manhã.
E o nosso era fingir
que não queríamos, não

sua mão em nossa cabeça.
O ofício por ser antigo,
tecia a cada manhã,
a mulher e seu vestido.

E nós, entre a nesga
da infância, ao desamparo,
cedemos aquela manhã.
No entanto, a inquice

vestida à dureza bruma,
flutua entre os cardos: nós
já nem fingimos
a fome de seu abraço.


Oráculo

O que é
do meu entendimento

se enerva, pulsa
rompe

a saliva.
Fora de si se atreve:

expulsá-lo
é colocá-lo dentro

da vida.
Esse o roteiro,

a promessa.
Colocar-se vivo

onde nos imaginam
a ferros.



***
 E
Edimilson de Almeida Pereira
Poesia
Ed. Patuá
2018

6 comentários:

  1. gostei do que li, vou buscar mais - tuas resenhas nos dão fome!! gracias!!!

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  2. Gostei muito do texto :)
    Tenho acompanhado seu blog faz um tempo e achei curioso um livro com esse título, já que meu primeiro nome também é Edimilson. Curiosa a relação que a gente tem com nosso nome né?

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    1. Oi, Edimilson, sim, é um encantamento de origem essa coisa da letra inicial. Aprender a primeira letra é uma espécie de sucesso dos grandes, não?
      Obrigada pela leitura.

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