sexta-feira, 23 de março de 2018

Anacrônicos – de Luiz Bras




Solidão é isso: um golpe no rosto e outro na nuca? Morrer sozinha, sob uma montanha de corpos indiferentes?


Por Adriane Garcia


Anacrônicos (@linkeditora), de Luiz Bras (heterônimo de Nelson de Oliveira) é um livro feito de ótima ficção científica. Em edição bilíngue (português-espanhol), a novela ocupa 34 páginas pulsantes, com uma narrativa ágil, que aguça a curiosidade do leitor até o fim. A história envolve uma série de surpresas e o narrador é uma delas (portanto, sobre isso, nada contarei).

Em um mundo futuro, que não parece tão distante, haja vista a velocidade desnorteadora dos avanços tecnológicos, uma mulher, cuja idade não fica clara, pois os processos de juventude e velhice já se confundem, vive o inusitado de receber em casa a visita da mãe, fazendo para a filha um bolo assado à moda antiga, numa espécie de déjà vu. O detalhe é que a mãe já está morta, há décadas.

Logo percebemos que o aparecimento de entes queridos que já morreram é um fenômeno que ultrapassa as fronteiras da casa da protagonista. “Essa cena é real? Está mesmo acontecendo?”

Com o tema da morte tomando a cena e na tentativa de entender o fenômeno, as pessoas acorrem aos cemitérios (com memórias digitais), mas toda a relação com a morte e com os mortos começa a se modificar, pois qual o novo sentido do fim quando ele já não é mais definitivo neste mundo? Qual o sentido de visitar um cemitério se os mortos retornaram para casa? Que interação é possível nesse fenômeno? O que acontece com as lembranças (que sabemos, são construídas também pela imaginação) quando o processo lembrado é claramente diferente do processo agora possível de ser observado e posto à prova?

Há tempos a ficção científica aponta a escravização das máquinas pelos homens e a inversão: a dos homens pelas máquinas. Neste Anacrônicos, os esclaus (radical que dá origem à palavra escravo em várias línguas) são robôs desprezados pelos humanos, colocados para realizar os serviços considerados mais baixos. O leitor descobrirá surpresas por aqui também.

Além de um livro muito criativo, que consegue falar de um tema como a morte, usando de muita lucidez, Luiz Bras nos presenteia com um humor inteligente e a chance de assistirmos à volta de mortos imagináveis e inimagináveis.


SUA MÃE APARECE NA COZINHA todos os dias às 15h15, faz o bolo e desaparece às 16h45. Não se atrasa nem falta.

Essa é a breve história de como a improvável felicidade virou algo pegajoso e frio.

Medo.

Ao entrar na cozinha, primeiro você imaginou que estivesse delirando. Mas a consistência da cena não era compatível com tudo o que você já leu sobre delírios e alucinações.

Depois você tentou conversar com sua mãe. Mas logo percebeu que a comunicação seria impossível.

Sempre que aparece, ela segue o mesmíssimo roteiro, como se estivesse presa num filme. Os mesmos movimentos, as mesmas falas na mesma sequência.

Você até imaginou que se tratava de uma projeção holográfica de altíssima qualidade.

Porém essa suposição se desfez rápido. Bastou você tocar sua mãe no braço pra constatar que ela não era uma simples ilusão audiovisual. Ela é de carne e osso.”

(p.15/16)


***
Anacrônicos
Luiz Bras
Novela
@linkeditora
2017



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