domingo, 14 de janeiro de 2018

Um defeito de cor – De Ana Maria Gonçalves



Um defeito de cor (Record, 2006), de Ana Maria Gonçalves, deveria ser leitura incluída no currículo escolar de todos os brasileiros. Não tendo sido, Um defeito de cor deveria fazer parte do compromisso de formação continuada de cada brasileiro. Trata-se de literatura e, sobretudo, trata-se daquela literatura que consegue trazer para tão perto um lugar, um personagem, uma história, que passamos a andar nesse lugar, com esse personagem e sofremos e nos alegramos como se essa história fosse a nossa (e em tantos momentos ela pode mesmo, de alguma forma, ser a história de quem está lendo).

A narrativa é feita em primeira pessoa e conta a saga de Kehinde (Luiza Mahin, mãe do poeta abolicionista Luiz Gama), africana trazida para o Brasil, no início do século XIX, em um “tumbeiro”, rumo à Bahia. Escravizada aos oito anos, segue para uma fazenda de engenho de cana, onde também se praticava a pesca da baleia e o preparo de seus derivados. O leitor, que já acompanhava a infância de Kehinde em Savalu, e depois em Uidá (Reino de Daomé), passa a conhecer também sua adolescência, juventude e vida adulta. A narrativa prossegue até sua velhice. Com isso, ergue-se um grande e completo retrato da vida de uma escravizada neste país, parte dos mais de cinco milhões de pessoas africanas, sequestradas em sua terra de origem e trazidas para o Brasil durante quatro séculos, onde estiveram sujeitas a todo tipo de violência, atos tipificados como crime, se cometidos contra uma pessoa branca.

Dos ritos dedicados aos voduns e orixás à capacidade de transformação no sincretismo religioso, do detalhamento de modos tribais africanos às diferenças culturais assimiladas dos árabes nos muçurumins, do trabalho, opressão e exploração do escravizado brasileiro aos seus modos de se libertar, Ana Maria Gonçalves cria uma obra monumental (não só pelas suas 952 páginas), espécie de epopeia, onde não se preocupa em dar à sua protagonista falas e pensamentos politicamente corretos. Kehinde é personagem de carne e osso, lutando pela sobrevivência, pela liberdade, pelo amor, pelo enriquecimento, pela identidade e faz isso de modo particular e único, talvez socorrida, em alguns momentos, pela sorte que acompanha os ibêjis (gêmeos, em iorubá), mas certamente guiada por seus fortes atributos: força, inteligência, sagacidade, generosidade e uma vontade enorme de aprender.

O livro de Ana Maria Gonçalves ainda traz riquezas como detalhes sobre os nomes em iorubá, que utiliza por quase toda a narrativa, sobre religião e política em terras africanas, além de um panorama histórico sobre a Bahia e o Rio de Janeiro.  Um defeito de cor é uma obra que faz refletir sobre as relações injustas e desiguais entre pessoas negras e pessoas brancas, de modo complexo, considerando o processo social, histórico e também afetivo. Tudo isso como pano de fundo para uma história emocionante, de uma mulher que busca a própria liberdade e o próprio destino, em uma vida cheia de encontros e desencontros. Acompanhar Kehinde saindo da África é viagem sem trégua. Acompanhá-la voltando à África põe-nos novamente no oceano. Já anciã, Kehinde precisará retornar ao Brasil para lidar com sua perda mais dolorosa. Nós, leitores desta obra ímpar, a esta altura, já iríamos com ela para qualquer lugar.

Na orelha do livro, Millôr Fernandes nos desafia: “Em suas 952 páginas, Um defeito de cor não tem hausto, parada pra respirar. Desmintam-me, por favor.”

Impossível desmentir Millôr, Ana Maria Gonçalves construiu uma das melhores obras da literatura brasileira.

“Kehinde

Eu nasci em Savalu, reino de Daomé, África, no ano de um mil oitocentos e dez. Portanto, tinha seis anos, quase sete, quando esta história começou. O que aconteceu antes disso não tem importância, pois a vida corria paralela ao destino. O meu nome é Kehinde porque sou ibêji ¹ e nasci por último. Minha irmã nasceu primeiro e por isso se chamava Taiwo. Antes tinha nascido o meu irmão Kokumo, e o nome dele significava “não morrerás mais, os deuses te segurarão”. O Kokumo era um abiku², como a minha mãe. O nome dela, Dúrójaiyé, era o mesmo que “fica, tu serás mimada”. A minha avó Dúrójaiyé tinha esse nome porque também era uma abiku, e o nome dela pedia “fica para gozar a vida, nós imploramos”. Assim são os abikus, espíritos amigos há mais tempo do que qualquer um de nós pode contar, e que, antes de nascer, combinam entre si que logo voltarão a morrer para se encontrarem novamente no mundo dos espíritos. Alguns abikus tentam nascer na mesma família para permanecerem juntos, embora não se lembrem disto quando estão aqui no ayê, na terra, a não ser quando sabem que são abikus. Eles têm nomes especiais que tentam segurá-los vivos por mais tempo, o que às vezes funciona. Mas ninguém foge ao destino, a não ser que Ele queira, porque quando Ele quer, até água fria é remédio.
A minha avó nasceu em Abomé, a capital do reino de Daomé, ou Dan-home, onde o rei governava da casa assentada sobre as entranhas de Dan. Ela dizia que esta é uma história muito antiga, do tempo em que os homens ainda respeitavam as árvores, quando o rei Abaka foi pedir ao vizinho Dan um pedaço de terra para aumentar o seu reino. Daquela vez, Dan já deu a terra de má vontade, e quando Abaka pediu outro pedaço para construir um castelo, Dan ficou bravo e respondeu que Abaka podia construir o castelo sobre a sua barriga, pois não daria mais terra alguma. Com raiva da resposta mal-educada, o rei Abaka matou Dan e, sobre as entranhas espalhadas no chão, ergueu um palácio suntuoso, a partir do qual teve início o grande império do povo ioruba. Dan também é o nome da serpente sagrada, mas esta história fica para mais tarde ou para outra pessoa contar quando chegar a hora dela, porque agora preciso falar de um tempo  que começou muito depois, quando a perseguição do rei monstro Adandozan obrigou minha avó a sair de Abomé e se mudar para Savalu.” (p. 19-20)


¹ Ibêji: assim são chamados os gêmeos entre os povos iorubas.
² Abiku: “criança nascida para morrer”.

***
Um defeito de cor
Ana Maria Gonçalves
Romance
Ed. Record
2006








Um comentário:

  1. Ótima resenha, Adriane. Obrigado por ela, já que eu não conhecia o livro.

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