quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Anticorpo – de Bruna Kalil Othero



Por Adriane Garcia

Anticorpo: proteína específica produzida como defesa contra aquele que a despertou, parte do sistema imunológico. Em si o prefixo do “contra”. Sem o anticorpo, o corpo está indefeso. Anti o corpo específico, defesa deliberada e calculista. O título escolhido por Bruna Kalil Othero para o seu livro convida-nos a repensar o sentido da palavra e do corpo. Mais especificamente, convida-nos a pensar o corpo feminino, sem deixar de lado (e como poderia?) todo o ataque que esse corpo sofreu e sofre no decorrer de milênios.

Com 122 páginas, Anticorpo é dividido em duas seções: Da cintura pra cima e Da cintura pra baixo. Na primeira parte, os poemas trabalham a temática do corpo, da mulher e do amor, mas sem a ênfase direta na relação sexual. Na segunda parte, a relação sexual aparece mais explicitamente, como objeto do poema. Tanto na primeira quanto na segunda parte, o tom é libertário, utilizando-se da reflexão, por vezes do humor, para situar uma mulher que, de posse do próprio corpo, toma a posse da palavra. Nos poemas de Anticorpo, que inclui alguns poemas metalinguísticos, corpo e palavra estão intimamente ligados. É pela palavra que o corpo se inscreve e escreve e é no corpo que a história pessoal é inscrita e escrita, numa espécie de corpoema. Não por acaso, Anticorpo começa com Em tuas mãos, onde o livro é a prova em tinta (sangue) da continuidade do corpo dos pais no corpo (livro) da poeta. E logo mais, em Mátria, o corpo se apresenta como lugar de registro da ancestralidade. O corpo da filha repete o corpo da mãe e, de certa maneira, guarda-o.

Coletânea que funciona muito bem, Bruna Kalil Othero conseguiu trazer ao leitor um projeto coeso onde um poema fortalece o outro, oferecendo possibilidades de leitura do mundo e das relações pelo viés do corpo feminino. A poeta utiliza a persona poética para denunciar sobre este corpo que não tem seu direito de ir e vir garantido, pois não pode se locomover nas ruas com segurança (sim, estamos falando de assédio e estupro); para refletir sobre as relações amorosas quando tantas vezes o outro acaba sendo o antígeno; para dessacralizar imagens criadas a fim de manter mulheres sequestradas de seus próprios corpos. Não à toa, são recorrentes nos poemas de Bruna a masturbação e ejaculação femininas e o poder do prazer autodirigido. A mulher de Anticorpo é uma mulher forte e senhora de si. Em Soneto do final feliz, Bruna, de modo sagaz, constrói um poema onde a vingança é finalmente falar, descrever de modo apenas permitido e naturalizado a um homem. No próprio título, o deboche remete aos contos de fadas, onde mulheres são sempre princesas frágeis esperando príncipes encantados. Bruna ainda faz isso no único poema do livro que se utiliza de uma forma clássica, porque o poema todo quer profanação. A mulher desse soneto não espera mais o homem, dona do próprio gozo, comprou um vibrador e, liberta, foi ser feliz. Noutro poema, Striptease, Bruna trabalha com a desautomatização do nu, brinca com a expectativa do leitor: faz esperar uma coisa e dá outra.

Sempre aprecio a poesia que tem algo a dizer. Entre tantos temas trazidos à luz da carne, Bruna, sem pudor, e amante da forma, anuncia o que a experiência de ser acrescenta à arte. Por tanto tempo, bordões ligavam as mulheres àquilo que, misterioso, não se podia entender. Óbvio, não é possível entender aquele que não pode dizer de si; não há qualquer predisposição para se entender quando não se quer ouvir. Anticorpo grita que a mulher não aguarda permissão, diz de si e diz do outro, do seu lugar. E o primeiro lugar é o corpo.



Na contramão da gravata

célebre imortal maravilhoso branco

me bate
uma vontade de ser
sujeito lírico neutro
infectado por aquela visão tão objetiva
& masculina

porque se eu
fosse
raimundo

mas antes
sequer
de terminar o raciocínio
meu útero
bate na porta:
esse mês
não


Cara-metade

diz a ciência
que para cada antígeno
há um anticorpo
específico-
complementar
que o destrói

nos completamos
você me disse
antes

mas fica a dúvida

quem
foi
qual


Anticorpo

cura
mas já feriu

fere
mas se reflete

reflete
mas não existe

não existe
mas ilude

ilude
mas encanta

encanta
mas perfura

perfura
mas desaparece

desaparece
mas já curou

***
Anticorpo
Bruna Kalil Othero
Poesia
Ed. Letramento
2017







4 comentários:

  1. Que leitura incrível, atenta, delicada. Obrigada por me dar a honra de ser lida por você. <3

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    1. Honra minha também ser sua contemporânea, poder ler um livro como esse, corajoso, que conseguiu ser político sem ser panfletário, que conseguiu ser forma, arte e palavra.

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  2. Gostei de deu poema anticorpo pelo jogo de palavras. O movimento é criativo e me aguçou a atenção. Não conhecia ainda o seu texto. Quero ler mais sua poesia erótica.

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  3. Sou cronista e poeta da geração de 70. Estou no Facebook onde escrevo uma coluna intitulada Chão de Praça.

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