domingo, 17 de dezembro de 2017

Via Férrea, de Mario Alex Rosa – Uma viagem pela luz no fim do túnel



 Por Adriane Garcia


Bela edição da Cosac Naify, o que é quase uma redundância, o livro Via Férrea, de Mario Alex Rosa é um objeto prazeroso de se ter em mãos: azul, formato estreito, 64 páginas que já sugerem não haver excesso.  Por fora, o título emblemático, curioso, substantivo concreto que antecipa a possibilidade de movimento, duro, composto, de ferro e metáfora. Via. Férrea.

Entrar nesse caminho, abrir esse livro, exige silêncio. Não é a poesia fácil que se pode ler no barulho infernal de nossos dias postáveis, pois pouquíssimo ou nada nos exigirá memória na terra da dispersão. É outra coisa, é como no verso de Drummond: “Penetra surdamente no reino das palavras”. É sempre necessário um silêncio para ouvir o outro silêncio.

Munida (e necessitada) de silêncio, abri. Nada sabia eu da viagem, essa a grande aventura a que os livros podem nos levar. Ocupei um dos vagões do monstro metálico, um vagão melancólico, onde primeiro me deparei com essa entidade assustadora e premente: o Tempo.

Em Via Férrea há uma constante inquietação e constatação a respeito do tempo e seu efeito sobre nós, o homem sabe-se um bicho que está no mundo, “bicho ferrado”, mas diferentemente dos outros bichos, consciente de sua condição, sente a ação do tempo. Bicho versus palavra, nomear é sua angústia e salvação. Há agonia se a palavra cala, pois a palavra surge como algo de bom nos dias, como uma interrupção na sua labuta de sísifo; porém, perpassa pelos poemas de Via Férrea a ideia de que a expressão jamais comunica exatamente aquilo que veio expressar. Existe um sentimento de impotência e incomunicabilidade diante do mundo.

“A tarde terminou com sinal de promessas.
Vieram as palavras!
E, com elas, a raiva varou noite adentro.”

Também é interessante notar a opressão dos calendários como repetição. Desde o calendário grafado, dos dias úteis, que aprisionam a vida, que colaboram para o sentimento da falta de sentido de viver, um dia após o outro, como o calendário mais natural, o calendário regido pelo aparecimento e pela ausência da luz do sol, pelos movimentos da Terra: manhã, tarde, noite e pelas estações do ano. O ser está preso aos seus afazeres, obrigações. Entre nascer e morrer (as duas extremidades de uma via), viver é um exercício penoso, desconfortável, “o salto é zero”:

Na próxima manhã
Sol escaldante barra a visão.
Não dessa mão que escreve
(rodopia pelas ruas da cidade)
e nada sobrevoa.
Fixar é aqui mesmo.
Contra tudo:
o salto é zero.
Posso não regressar.
Mas, a tarde neutra, desemboca
na manhã seguinte.”

Da aflição para que os dias úteis terminem, o humano prazer de que o sábado não termine nunca, mas ele “vai anoitecendo”, e o domingo é o prenúncio da segunda-feira. Uma das imagens mais bonitas de Via Férrea, por sinal, está no poema Domingo, onde, de forma tão sutil e indireta, o poeta nos faz ver um domingo (um menino?) soltando pipa (a luz que faltava?). A maneira pela qual ele faz isso é um grande acerto no poema: dizer sem dizer, mostrar, mostrando outra coisa, permitir que a imaginação torne o leitor coautor do poema:

“O domingo veio quente.
Sol a pino.
Ele empinava a luz que faltava.
Então, já sabe escolher entre o sim e o não?
Não.
Então volte e mastigue suas próprias palavras.”

Não estaríamos viajando, verdadeiramente, numa via férrea, acaso não prestássemos atenção na geografia. A paisagem é mesmíssima e é o amor que pode interrompê-la com alguma novidade. Assim, o amor aconteceu durante o percurso, mas a via só leva para a frente, exceto pela memória, “poeira”, que “noitea” os dias. O amor é a força capaz de fazer o coração bater, mas “ele só bate”. O amor é o grande sonho irrealizado, nem ele ou o sexo aparecem como redenção nesta poesia de Mario Alex Rosa, pois não é possível seguir na companhia do amor, exceto como perturbação: a vida é solitária e de dor continuada. Como no ritmo de um trem, o ritmo desta dor continuada é melodicamente constante e, por isso, suportável, mas apenas depois de já se ter alcançado a maturidade de saber ouvi-lo:

“Nunca o relógio andou tão rápido:
Disseram: Tempo de mudanças traz vida nova!
As folhas de outono amanhecerão
num jardim primaveril. As chaves abrirão
outras portas. Para sempre pensará no suicida que foi.
Em todo caso, sem desastre fez o dever de casa: mudou.
Mas aqui, onde ninguém chega,
uma dor muda
dói.”

E a via segue. O ser, comprimido pelo próprio caminho, sente raiva, violência e mantém-se acuado, minúsculo, no paradoxo de conter em si um furacão de sentimentos. Durante esse trajeto, há pouca possibilidade de fuga, e nem mesmo o poema se estabelece como uma:

 “Aqui no branco
ou na avenida estreita,
a margem é a mesma.
A sombra também.”

A dor interna muitas vezes coincide com uma dor externa, visível na paisagem. Ora, eu não disse que a paisagem era mesmíssima? Isso não quer dizer que ela seja calma e pacífica. O personagem que percorre Via Férrea (porque poesia também é ficção) é traído pela memória,  sente a mordida, mas é dentro de si: a ferrugem, essa oxidação que é tão simbólica da corruptibilidade da matéria, dos nossos corpos, dos trilhos. Novamente a ação do tempo, das intempéries.

Via de esperança mínima, o eu-poético em Via Férrea sofreu o suficiente para não ser mais ingênuo, sabe que os dias não permitem grandes ousadias, que são feitos de medo, inclusive do medo de amar. Não há concessão: o outro, que seria a ponte de alguma salvação ou sentido, não se realiza. Essa é a via do ser extremamente sozinho, que não deseja mais interrupções de ritmo com sobressaltos. E tanto a esperança quanto o amor deixariam o coração acelerado.

Terminada minha primeira leitura, fechei o livro e recomecei a viagem. Lembrei-me do poeta W. H. Auden e voltei a uma sua palestra em que dizia que a poesia funcionava quando, entre outros elementos do saber fazer, antes, o poeta encontrava o elemento sagrado. Para Auden, “não se pode escolher um ser sacro, é preciso encontrá-lo. No encontro, a imaginação não tem outra escolha a não ser reagir.”

Via Férrea traz vários de nossos “sagrados” e reage a eles, estes a que temos adoração ou repulsa: tempo, vida, morte, incompletude, amor, raiva, natureza, mistério, sentido. O poeta consegue em Via Férrea fazer um livro em que o confessional é matéria prima e, se vestiu em si mesmo, com o poema, uma camisa de força para continuar o caminho, vestiu em cada poema esta contenção que torna as palavras arte. O resultado é que emociona o leitor preparado para sentar no banco ao seu lado e seguir. Em silêncio.  A viagem emociona porque se nos identifica. Sabemos muito bem onde a via começa e onde vai terminar.

“Trilha

Se pudesse, mataria a palavra que guardo aqui.
Mas tenho muitos elementos covardes e adio
o que um dia, inevitavelmente, terá que deixar de ser.
A via férrea cortará os trilhos, os braços e, talvez,
abra um clarão no escuro.”



***
Via Férrea
Mario Alex Rosa
Poesia
Cosac e Naify

2013

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Vertigem digital, de Andrew Keen




Por Adriane Garcia

“A transparência é boa demais para ser verdade. O que há por trás desse mundo falsamente transparente?”
Jean Baudrillard (cit. p. 130)
  


O livro Vertigem digital, de Andrew Keen (tradução de Alexandre Martins, ed. Zahar) é um excelente livro para se refletir sobre as redes sociais.

No subtítulo “por que as redes sociais estão nos dividindo, diminuindo e desorientando” o autor já dá o tom de crítica com o qual prosseguirá por toda a obra.

Partindo do corpo embalsamado do filósofo Jeremy Bentham, em exposição no University College de Londres, Andrew Keen, de forma rica e habilidosa, convida-nos a pensar, principalmente, a questão da privacidade em tempos de redes sociais.  Utilizando analogias com o cinema (Um corpo que cai, de Hitchcock), com a literatura (1984, de Orwell e Utopia, de More) e com a filosofia (entre outros, Sobre a liberdade, de Stuart Mill), além de informações interessantes sobre o Vale do Silício, Vertigem Digital consegue prender a atenção do leitor com um texto fluido e curioso.

O autor é jornalista norte-americano e historiador formado na Inglaterra, especializado nas criações do Vale do Silício. Ciente de que as redes sociais vieram para ficar e que, neste sentido, não há nada a se fazer, aponta a necessidade de se pensar e repensar o seu uso. Segundo Andrew, as redes sociais podem ser comparadas ao antigo projeto arquitetônico do panóptico, de Jeremy Bentham, utilizado, sobretudo, para prédios prisionais, onde se buscava a maior vigilância com o menor esforço. Empresas bilionárias de internet vendem, a todo momento, os dados que disponibilizamos nas redes, “se você não paga pelo produto, você é o produto”. É a chamada “economia da atenção” ou “cultura participativa”, em que o que está em disputa é o seu tempo e o quanto você se dispõe a revelar. Um mundo de posts, likes e compartilhamentos que não só compete no mundo virtual como compete com o mundo real.

Andrew Keen escreve um livro bem abrangente, que observa o fenômeno das redes sociais tanto no efeito que promovem sobre a vida privada quanto na vida pública ou política, quando dados e informações dos usuários são utilizados para a manipulação, para o bem e para o mal.

Livro para ser lido, relido e indicado para leituras.

“A revolução digital muda tudo, diz Shirky, porque a “cultura participativa” elimina as antigas hierarquias da mídia industrial do século XX. Portanto, não precisamos mais de um estúdio de Hollywood com recursos, como o Paramount, ou de um diretor de cinema autoritário como Alfred Hitchcock, para fazer Um corpo que cai. O monopólio da mídia por Hollywood, no século XX, é substituído pelo que Shirky chama de “produção social” da internet, na qual a cultura é criada por todos nós, e não pelas elites. Assim, a mídia digital se torna literalmente o “tecido conjuntivo da sociedade”, a fonte participativa de cultura e comunidade. Mais uma vez citando John Perry Barlow, todos nos tornamos informação – cada um de nós é um conector participativo nessa produção coletiva de cultura.
Mas Shirky – não por acaso apelidado de Herbert Marcuse da atual intelligentsia da rede – está certo por todas as razões erradas. No século XX, íamos ao cinema para sermos aterrorizados pelos filmes de Hitchcock sobre homens inocentes como Scottie Ferguson, que eram arrastados para pesadelos que não compreendiam nem controlavam. Mas quando as luzes se acendiam, o pesadelo terminava, e estávamos livres para sair do cinema e retomar nossas vidas normais.
Hoje, porém, Um corpo que cai de Hitchcock foi radicalmente democratizado, de modo que todos participamos do drama. Essa é a verdade da “cultura participativa” de Shirky. Vejam, a mídia social se tornou tão onipresente, de tal forma é o tecido conjuntivo da sociedade, que todos nos tornamos Scottie Ferguson, vítimas de uma história assustadora que não compreendemos nem controlamos.
Sim, essa versão digital de Um corpo que cai é estranha pra cacete.
Assim como Gavin Elster idealizou a São Francisco de junho de 1949 e Scottie Ferguson se apaixonou pela falsa Madeleine Elster, Shirky e seus colegas comunitaristas se enamoraram de uma cultura participativa pré-industrial que provavelmente jamais existiu, e sem dúvida não pode ser ressuscitada em nosso mundo supercompetitivo e cada vez mais individualizado do século XXI. E tal como Elster atraiu seu próprio colega da Universidade de Stanford para uma soturna fantasia de logro e coração partido, esses comunitaristas românticos, por uma razão ou outra, arrastam todos nós para um futuro que a maioria na verdade não quer – um love-in digital de publicalidade-padrão; uma luta darwiniana de indivíduos hipervisivelmente relacionados; uma “aldeia global” onde segredo e esquecimento desaparecem; uma “cultura participativa” que projeta uma transparência indesejada sobre toda a nossa vida; um mundo Creepy SnoopOn.me de incessantes verificações no foursquare, de computadores que nos conhecem e varreduras faciais de Facebook, no qual ninguém nunca é deixado sozinho.
Embora Steven Johnson compare de modo favorável o “ecossistema” da internet a um dos recifes de coral cheios de vida de Charles Darwin; embora Nicholas Christakis e James Fowler nos prometam que, “quando você sorri, o mundo sorri com você”; embora Jeff Jarvis nos ofereça uma passagem de volta para a transparência “idílica” da Inglaterra de Henrique VIII; e embora Clay Shirky garanta que “os seres humanos valorizam intrinsecamente uma sensação de contato” – apesar disso tudo, o que a tecnologia em rede produziu de verdade foi a ressurreição do Autoícone de Jeremy Bentham – uma máquina de autoglorificação que promete, com toda a sedução de uma heroína coercitiva de Hitchcock, nos tornar imortais.” (p. 127 - 128)

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Vertigem digital
Andrew Keen
Zahar
2012