segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Todos os abismos convidam para um mergulho, de Cinthia Kriemler



Por Adriane Garcia


“Apanhar, obedecer, saciar. Apanhar, obedecer, saciar. Apanhar, obedecer, saciar.”
(p. 259)

Eu já conhecia o trabalho anterior de Cinthia Kriemler, Na escuridão não existe cor-de-rosa, livro de contos do qual gostei muitíssimo. Quando peguei, há alguns dias, Todos os abismos convidam para um mergulho (ed. Patuá, 2017), não tinha a menor noção do que se tratava. Sei que comecei a ler num dia e no outro já havia terminado. Eu simplesmente não conseguia parar a leitura; nos momentos em que outras atividades me exigiam, ficava ansiosa precisando voltar.

Passei dois dias mergulhada na vida de Beatriz, entre sustos, revelações e crueldades. A protagonista de Cinthia é um abismo escuro, misterioso, fascinante. É Beatriz quem narra sua história, seu mundo, tudo aquilo que viu e vê. Desta maneira, é pelos olhos dela que o leitor passa a enxergar. Abismo dela, abismo nosso, Beatriz chama o leitor cada vez mais para o fundo: “Deixai toda esperança, vós que entrais.” Dante ficaria surpreso com o inferno que podemos criar entre nós.

Enquanto acompanhamos o trabalho de Beatriz, que é assistente social e atende vítimas de violência em situações de risco, mulheres e crianças violentadas, adolescentes prostituídos por seus próprios pais, também partilhamos de seu grande conflito: o suicídio da filha, Laura, que sofria de depressão. Beatriz não pode se perdoar por não ter percebido a depressão da própria filha enquanto cuidava dos filhos dos outros, culpa que carrega e que, a seu modo, tenta resolver na compulsão pelo sexo.

Ler este romance e caminhar com Beatriz é adentrar num dos lados mais escuros de nosso país. Todos os abismos convidam para um mergulho é também uma denúncia escancarada da infância e da violência contra a mulher no Brasil. De forma brilhantemente literária, Cinthia Kriemler constrói uma narradora complexa, uma mulher forte, feminista, independente, que se tornou dura por recusar a si própria o estereótipo de mulher frágil, que conseguiu se desconstruir, mas que não conseguiu sua reconstrução. E é na tentativa dessa reconstrução, onde parece só haver o erro, que tanto o que há ao redor de Beatriz quanto o próprio processo vivido por ela vão convergir para o mesmo ponto.

Algum dia quebraremos o círculo vicioso que a violência contra a infância inicia e que parece sem fim? Que esperança haveria para uma sociedade que maltrata crianças, que estupra meninos e meninas, que exerce o machismo e a misoginia com naturalidade? Que esperança haveria para vidas que nem nasceram?

“Antônio atirou na mãe. Eu sei que foi ele. O advogado também sabe. Mas não é isso que advogados fazem? Mentem, mentem, mentem. Com muita seriedade. Convencem. Tudo o mais é interpretação. A minha é de que Antônio nunca nasceu. Gente nasce de mãe e de pai, não de esperma e óvulo. Cópula, concepção, gestação é ciclo de bicho. No de gente, entra afeto. É preciso ser sonhado, esperado, idealizado, amado para se nascer. Antônio é só mais um animal parido. Eu sempre reconheço os afins.”
(p. 132)

Todos os abismos convidam para um mergulho é um livro excelente, mas, mais que isso, é um livro necessário. Um livro sobre tantas coisas que negligenciamos, sobre o preço alto do desamor.

“Uma mulher deve morar sozinha. Por algum tempo. Por muito tempo. Para sempre. Para ter o controle ou o descontrole da sua própria vida. Para escolher entre ser independente e depender do que quiser. Para se decidir pela liberdade que lhe convém, não pela que convém aos outros. Para aprender a prestar contas de horários, erros, decisões, copos de vodca e sexo apenas a si mesma.
Uma mulher deve saber que com os homens acontece diferente. E que por isso eles não sabem o quanto tudo isso representa. Porque nascem sob o privilégio do masculino. Porque crescem sob o privilégio do poder. Sem ranços, nem obstáculos, nem preconceitos condenando sua existência a um patamar inferior. Privilégio não é palavra feminina. Conquista é. Essa luta por uma paridade urgente que nos convoca a umas, mas não a todas. Essa capacidade de nos livrarmos da injustiça que nos espera na sala às cinco da manhã.
O que me dói não é encontrar Gustavo me esperando, esbravejando como papai fazia. Nem a mão dele apertando meu braço com força para me cobrar explicações. Nem as palavras horríveis que ele me diz antes e depois de eu mandar ele sair da minha casa. Só o que me dói é a cegueira. A minha cegueira longa e burra.”
(p. 155-156)

*** 

Todos os abismos convidam para um mergulho
Cinthia Kriemler
Romance
Ed. Patuá
2017



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