sexta-feira, 22 de setembro de 2017

“Ainda”, de Laura Cohen Rabelo – Da impotência sobre a permanência, ou vice-versa


Por Adriane Garcia

Foi com alegria e curiosidade que recebi o livro “Ainda”, de Laura Cohen Rabelo, edição bonita da Impressões de Minas, pelo selo Leme. O desejo de lê-lo já me havia sido despertado pela indicação de outra escritora, Cristina Agostinho. Cristina havia ficado impressionada pela riqueza do livro – vocabular e de conhecimentos.

Já nas primeiras páginas, dei razão à Cristina; Laura conta uma história com fluidez e mantém aceso o interesse do leitor. Seu texto é permeado de “pequenas tensões”, e ela sabe bem manejar esse tempo, dar-nos a conhecer em momento exato, de maneira que, enquanto acompanhamos sua protagonista Marina e a forma como se dá seu relacionamento com Felipe, outras questões, questões profundas e importantes, perpassam a narrativa.

Marina é uma estudante de grego antigo, indo em direção ao mestrado. Felipe é restaurador, amigo da irmã de Marina, Martinha, com quem divide o apartamento até sua ida para Portugal e Grécia. Nesse ínterim, Marina e Felipe se conhecem melhor e, visto em primeira camada, o romance de Laura Cohen é a história do desenvolvimento desse afeto. Porém, lido em segunda camada, há uma ferida que não se cicatriza: o passado. Não o das personagens, propriamente (que, por sinal, são historiadores, restauradores, estudantes de grego antigo...), mas o passado da humanidade.

Com muita competência, Laura reflete e faz refletir sobre a angústia causada pela nossa impotência diante do passado. Em determinado momento, sua personagem Marina nos indaga: “O que é menos danoso – receber sempre os restos das coisas antigas ou não receber absolutamente nada, encarando o esquecimento total como um fato absoluto e inevitável? Como dói menos na memória: quando falta a maior parte ou quando há o mais completo silêncio e ignorância de registros? Por fim: seria mais danoso esquecer-se de tudo ou lembrar-se de absolutamente tudo?”

Ainda é um romance que trata de esquecimento e memória; permanência e passagem; o ser, a morte e a imortalidade; a falibilidade das reconstituições. Não raro, recorrem em “Ainda” as bibliotecas, estantes de instituições ou particulares, o livro aparecendo como esse artefato carregado de tempo e de tentativas de dar conta do que nos antecedeu.

Laura Cohen Rabelo constrói um romance que emociona. Perante o mistério, somos convidados a refazer o nada, a encontrar uma narrativa diante das ruínas do nada, para que tenhamos alguma coisa, algum sentido. O passado, depois de narrado, se nos apresenta. Está diante de nós com sua ferida aberta e nos pede para tocá-lo, quer se provar verdadeiro, quer continuar existindo. É interessante notar que, em Caravaggio, na pintura “A incredulidade de Tomé”, a ferida de Jesus, apesar de aberta, não sangra. É Jesus que ser quer crido. No romance de Laura,  a ferida de Felipe sangra, e muito. É o sangue que quer ser crido. Como não creríamos na angústia de tudo o que nos é irrecuperável?



(...) Com o mesmo mármore que eles construíram as colunas do templo preenchem-se os espaços vazios dilacerados pela duração dos dias. No séc. XIX tinham colocado grampos de ferro para unir os pedaços caídos, grampos de ferro que, como você bem sabe, dilatam com o calor e oxidam com o tempo, avermelhando o branco imaculado do mármore. Ah, os bem-intencionados do século XIX e sua pressa, sua ciência inquebrável que provoca mais mal do que bem. Mas eu me pergunto, Marina, estamos nós provocando mais estrago do que consertando? E será que é necessário consertar as coisas assim? De qualquer forma, apesar da quantidade assustadora de gente que passa por aqui, a sensação é de uma absurda harmonia. Equilíbrio, civilidade. São as colunas que todo artista copiou, a arquitetura que todo construtor desejou, invejou, odiou, e como peregrinos de uma religião absurda (uma religião que nem parece realmente poder ser chamada de religião, uma religião que parece jamais ter existido), todos caminhavam pisando as pedras no mais pleno silêncio ou com os mais tímidos sussurros, dizendo palavras das mais diversas línguas. O perfume das oliveiras, ácido, mas também meio doce no fim, toma o ar e se mistura ao cheiro seco da areia quente. Amo o calor mais do que qualquer pedra, mais do que qualquer ruína. Pelo excesso de luz, José consegue ver bem melhor do que em Portugal, abrindo bem os seus olhos miúdos pelos óculos de muito aumento. Vez ou outra ele parava para descansar, contemplar o que podia contemplar e me contar uma história, e eu lhe dava água e pistaches (os melhores que já comemos, Marina). Ele disse uma coisa bonita que quero guardar com você: é que todo mundo ergue suas colunas já ansiando que elas virem ruínas, ansiando que no futuro as pessoas se lembrem de nós (...)” p.70/71

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Ainda
Laura Cohen Rabelo
Edições de Minas
Romance

2012

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Orides Fontela - Poesia completa



Por Adriane Garcia

Terminei de ler o livro Orides, Poesia completa (contendo os seis livros), publicado pela editora Hedra. 

Há tempos eu me cobrava avançar um pouco na poesia de Orides Fontela. Confesso que, apesar de reconhecer como inegável o rigor da poeta, seus versos absolutamente bem medidos, sua poesia marcada pela exatidão, gostei mesmo foi do livro Rosácea, onde acho que ela se solta um pouco mais nas temáticas. Explico:

É que a poesia de Orides traz indagações filosóficas sobre o ser, a busca de uma essência e tenta destrinchar a forma das coisas, ao mesmo tempo, dando notícia dessa impossibilidade, da insuficiência da palavra para executar tal projeto. Algo bonito e profundo, o desfazimento das formas. O problema, para a minha leitura, foi o quanto isso se repetia por livros e livros. Algumas simbologias, como pássaro, por exemplo, tão recorrentes que, quando voltavam , eu pensava: "lá vem o pássaro de novo". 

Ainda assim, há poemas belíssimos, reflexões do fundo do silêncio. Vale ler e conhecer. 

NOTURNO

Os que nascem de noite
e, entre ossos, vigiam
                        o fogo
os que olham os astros
e, oprimidos, respiram
                    em cavernas

os que vão viver apesar
da escuridão e nos olhos
a luz clandestina
                      acendem

os que não sonham, os que nascem
                                          de noite
não vieram brincar: seu peito
guarda uma só palavra. 


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Orides Fontela - Poesia completa
Organização Luis Dolhnikoff
Hedra
2015

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Nihonjin – Sagas para nos tornarmos visíveis


Por Adriane Garcia

Eu havia acabado de ler uma citação do escritor turco Orhan Pamuk: “o juízo moral é um inevitável terreno pantanoso no romance. Tenhamos em mente que a arte do romance produz seus melhores resultados não quando julga as pessoas, mas quando as compreende”. Concomitante, eu lia Nihonjin e pensava que, quando fosse escrever sobre o livro de Nakasato, usaria essa citação, porque era exatamente o que eu sentia sobre o modo como ele realizara este romance.

Muitas perguntas se interpuseram durante minha leitura. Eu me perguntava, principalmente, se eu havia lido em literatura outra história cujos personagens fossem esses, trazidos pela imigração japonesa ao Brasil. E eu me respondia não, respondia não para várias perguntas que me fazia, de meu desconhecimento sobre essas pessoas, sobre esse processo, não o histórico, que acabamos sabendo em linhas gerais, muitas vezes, mas o processo íntimo, que somente a literatura oferece.

O que Nakasato nos dá nesta sua obra é uma saga. A saga de uma família japonesa, marido, esposa e agregado que vem trabalhar na lavoura do café, na segunda década do século XX. Por meio desta família e sua descendência, o leitor apreende e aprende, torna-se aquele que se aproxima do outro e: compreende. Desde o avô, o ojiichan, súdito do imperador, nacionalista inflexível, ao filho Haruo, nascido em solo brasileiro e cujos valores apontavam na direção da assimilação e do convívio possível de dois mundos; da esposa que, com naturalidade, somente se sentava à mesa para comer, após a refeição servida do marido, à que tudo abandona, em busca da sua realização pessoal, o que o leitor vislumbra é a formação de cada um e lê, empático, sobre personagens que figuram em antagonismo.

A narração é fluida, a estrutura do romance se dá entre capítulos que quase funcionam como contos. Presente e passado, na voz eficiente de um narrador que deixa claro, desde o início, que está trabalhando com a memória cheia de lacunas, que está preenchendo essas lacunas com as entrevistas que faz com seu avô Hideo e seu tio Hanashiro, com o convívio, o ouvir dizer de suas tias e seu pai, com o despertar das fotos amareladas que dormiam numa caixa de papelão. É de tentar imaginar como veio aquela primeira esposa do avô, Kimie, doce e trágica personagem que chega a ser poética, aguardando a neve no Brasil, que Oscar Nakasato começa sua reconstituição.

O livro é um convite para descobrir este outro mundo que veio habitar o Brasil, que construiu colônias, que ergueu o bairro da Liberdade, que se recusava a aceitar a derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial, que precisou aprender a viver com o gaijin, que, pensando se proteger, lutou contra a miscigenação dos seus, mas que não conseguiu controlar o chamado invencível do amor (o amor, sabemos, desconhece etnias).

Ao contar a história da família de Hideo no Brasil, Nakasato nos apresenta detalhes da vida desses imigrantes, leva-nos para dentro de suas casas, de seus conflitos, de suas dificuldades, de sua luta, de sua invisibilidade. Nihonjin é um livro que ensina e emociona e que em sua linguagem tão comunicativa se constitui um romance com predicados de excelência e sem nenhum pedantismo.
É de ler, reler e até dar de presente.

Ojiichan, comparando Kimie com a vovó, disse que eram muito diferentes, que ela, Kimie, era medrosa, fraca, que não servia para o trabalho duro da lavoura. E falou, rindo um riso que não ria havia muito tempo, um riso que trazia do passado distante, que ela ficou esperando pela neve no Brasil. Eu me surpreendia enquanto o riso ia se transformando em um sorriso melancólico.
Agora via nas marcas de expressão de seu rosto e nos olhos cansados uma mágoa que trazia daquele passado. Eu disse:
–  Gostaria de tê-la conhecido.
– Para quê? Não fazia nada direito, mal falava.
        Mas gostei de Kimie, interessei-me por ela. Pensei nela como personagem, alguém que nasceu da espera pela neve numa fazenda, no interior de São Paulo.(p. 10 – 11)

*** 

Nihonjin
Oscar Nakasato
Benvirá
2011