terça-feira, 29 de agosto de 2017

Turismo para cegos – de Tércia Montenegro



Por Adriane Garcia


Turismo para cegos, de Tércia Montenegro (Cia das Letras, 2015), conta a história de Laila e Pierre. Laila é a pintora que está ficando cega, em um processo irreversível. Pierre, um funcionário público que era seu aluno nas aulas de pintura.

Narrado pela atendente de um petshop, que conheceu os dois quando escolhiam um cão-guia, o romance se faz de uma forma instigante e envolvente. Tércia Montenegro, ao desenvolver a trama desse relacionamento, traz ao leitor uma aproximação com o tema da cegueira, da deficiência visual, das deficiências como um todo e uma reflexão acessória, porém não menos importante, sobre a questão do léxico politicamente correto e a linguagem literária. Turismo para cegos não está preocupado em se afinar com o jargão de “portadores de necessidades especiais”, menos ainda em tratar o assunto com qualquer “coitadismo”; é literatura e, por isso, acompanha seus personagens naquilo que os fazem verdadeiros, para o bem e para o mal.

Não obstante a inegável terribilidade de perder a visão, Turismo para cegos nos fará perguntar se a Laila que nos é apresentada é a Laila de antes da cegueira ou se a cegueira é que lhe causou uma grande modificação. Laila é uma cega voluntariosa, que usa Pierre como se ele fosse o seu cachorro, tanto que escolhe esse nome, Pierre, para nominar também o cão. Pierre, por seu lado, gosta do exercício de estar com Laila (que não pode mais ver o quanto ele é feio), faz do ato de ajudá-la uma espécie de missão e permite seus caprichos, como o de viajar gastando todo o seu dinheiro. Porém, tudo isso a narradora conta a partir de relatos de Pierre e do preenchimento das lacunas, obviamente, pela sua imaginação. Ou seja, as informações não são dadas pela própria Laila, o leitor não conhece essa primeira pessoa, em primeira pessoa, o que torna a narrativa ainda mais curiosa, confundindo de vez o nosso julgamento.

Turismo para cegos é um livro que prende nossa atenção do início ao fim, de leitura fluida e profunda, com algumas reviravoltas muito interessantes. Ao viajarmos para dentro da escuridão de Laila, vamos também conhecer a escuridão da narradora e de Pierre. E, claro, pensaremos nas possibilidades da nossa própria escuridão. 

A literatura sempre escreve certo pelas linhas tortas. Ao tratar seus personagens sem compaixão, Tércia nos oferece o exercício da compaixão, porque enxergar não necessariamente é ver. 

(...) Em várias conversas, ela já demonstrara impaciência com o que chamava de “demagogia do fim dos tempos”. Enquanto o planeta se destruía na maior velocidade possível, os mocinhos de propaganda apareciam com cartazes de uma atitude ecológica. Gabavam-se de usar bicicleta em vez de carro, separavam o lixo por categorias e perdiam-se em discussões sobre a melhor forma de descartar peças íntimas e óleo de cozinha. E toda a retórica da diversidade criara um léxico falsamente neutro para se referir a negros, gays ou deficientes, gerando polêmicas e projetos a se alastrar pelo mundo. Ninguém mais tinha direito ao silêncio ou à palavra censurada – embora o pensamento continuasse a todo vapor, incontrolável como sempre foi.” (p. 70)

Os recém-nascidos sempre me inspiraram pavor, como se fossem uma fissura do universo. O todo harmônico de repente extravasa, materializando-se de forma inexplicável. É diferente do que sinto em relação aos mortos, que afinal não se acabam completamente: persistem nos ossos, em células dispersas. Mas um bebê, inédito de feições, com sua miúda presença invasiva, traz um desequilíbrio e rompe espaços até então ausentes. As exigências surgem desde o primeiro momento, com a criatura que esperneia, debatendo-se numa gaiola invisível. Eu me lembrava do medo nas ocasiões em que visitei maternidades e berçários, para alguma prima ou tia me mostrar o novo membro da família. Depois, na época em que uma amiga de adolescência fizera “uma besteira”, conforme falou, eu a vi parecendo uma espancada a se recuperar no leito do hospital. Uma bisnaga feita de panos, com uma cabecinha humana, descansava a seu lado – e mal pude encará-la. Perdi o fôlego só de pensar que um dia isso fosse acontecer comigo.” (p. 206)


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Turismo para cegos
Tércia Montenegro
Romance
Cia das Letras
2015

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

A literatura imprescindível de Philip Roth – Leitura de Casei com um comunista



O romance Casei com um comunista, de Philip Roth (Cia das Letras, 2000), tradução de Rubens Figueiredo, conta a história de Ira Ringold, narrada pelo conhecido alter-ego de Roth, Nathan Zuckerman. Nathan conhecera Ira na adolescência, quando Ira já era um militante comunista linha dura. Décadas depois, ao se encontrar com o professor Murray, irmão de Ira, Nathan toma conhecimento do fim da história de seu ídolo nos anos de juventude. É essa história que Philip Roth nos trará em 422 páginas.

Para além da trama que se passa nos anos de macarthismo, da perseguição política aos comunistas, a “caça às bruxas” dos anos 50, nos Estados Unidos da América, Philip Roth traz ao leitor, neste livro, um verdadeiro tratado sobre política e literatura, sobre liberdade e disciplina, liberdade e desapego e sobre ideologia e morte. Sobretudo, do que Roth falará e deixará claro, na composição de seus próprios personagens, será sobre a complexidade individual, o antagonismo humano.

Ira (um astro de rádio em ascenção) é o comunista ferrenho que se casará com uma atriz de sucesso, a rica e famosa Eve Frame, escravizada emocionalmente pela filha Sylphid. Entre a ideologia comunista e a prática burguesa, a vida de Ira Ringold e daqueles que orbitam em torno de sua história, habilmente mostrada por Roth, é o retrato com o qual o autor demonstra a potência dos antagonismos que há em cada um de nós, o fosso que existe entre aquilo que acreditamos e muitas vezes pregamos e a forma com que agimos. À exceção do personagem O'Day, que tem absoluta consciência de que para não se perder de si é preciso estar num quarto “cela”, num quarto sem nenhum bem-estar além de uma dura cama para dormir e algo para ler e comer, todos os personagens de Casei com um comunista são feitos de complexidade e incoerência (esta a coerência humana). Mesmo nos personagens que mantêm uma conduta mais condizente com a sua crença, como o caso do professor Murray, por fim, o que vemos é a grave presença da sombra de um arrependimento. Roth chega à tensão de construir sua personagem Eve Frame, uma mulher invejada, infeliz na vida e no amor, uma judia antissemita.

Da página 288 em diante, o que o leitor tem é a riqueza da discussão sobre o fazer literário, a reflexão exposta do fazer artístico se imbricando na própria trama, o professor Leo Glucksman trazendo o paradoxismo no próprio discurso, pois que, como todos, acha sua verdade superior às outras. E, por fim, a magnitude de uma obra que pensa o ser humano e a humanidade, sem condescendência com qualquer grupo, e que se pergunta o que, afinal, fazemos com os nossos erros; qual o sentido de nossas próprias histórias, individuais e coletivas, diante da morte.

Um livro imprescindível, cujo compromisso é apenas com a literatura.

“ – Arte como arma? – disse ele, a palavra “arma” carregada de desprezo e ela mesma uma arma. – Arte como a tomada da posição correta com relação a tudo? Arte como o advogado das coisas boas? Quem foi que ensinou tudo isso a você? Quem ensinou que arte são slogans? Quem ensinou que a arte está a serviço “do povo”? A arte está a serviço da arte, senão não existe arte nenhuma digna da atenção de ninguém. Qual é a razão para escrever literatura séria, senhor Zuckerman? Derrotar os inimigos do controle de preços? A razão para escrever literatura séria é escrever literatura séria. Você quer se rebelar contra a sociedade? Vou lhe dizer como fazer isso: escreva bem. Quer abraçar uma causa perdida? Então não lute em favor da classe trabalhadora. Eles vão se dar muito bem na vida. Vão se empanturrar de carros Plymouth até seu coração se fartar. O trabalhador vai dominar todos nós – da estupidez deles, vai jorrar a lama que é o destino cultural deste país vulgar. Em breve teremos neste país algo muito pior do que o governo dos camponeses e operários. Você quer uma causa perdida para defender? Então lute pela palavra. Não a palavra bombástica, a palavra inspiradora, não a palavra pró-isso e anti-aquilo, não a palavra que alardeia para as pessoas respeitáveis que você é um sujeito maravilhoso, admirável, compassivo, sempre do lado dos oprimidos e humilhados. Nada disso, lute sim pela palavra que afirma aos poucos alfabetizados condenados a viver na América que você está do lado da palavra! Esta sua peça é um lixo. É medonha. É revoltante. É lixo grosseiro, primitivo, tosco e propagandista. Ela tolda o mundo com palavras. E esbraveja aos céus e terras as virtudes do autor. Nada produz um efeito mais sinistro na arte do que o desejo do artista de provar que ele é bom. A terrível tentação do idealismo! Você precisa alcançar o domínio sobre o seu idealismo, sobre a sua virtude, bem como sobre o seu vício, o domínio estético sobre tudo aquilo que o impele a escrever, em primeiro lugar – a sua indignação, a sua política, a sua dor, o seu amor! Comece a pregar e tomar posições, comece a ver a sua perspectiva como superior às outras, e você é inútil como artista, inútil e ridículo. Por que escreve essas proclamações? É porque olha o mundo em volta e fica “chocado”? É porque olha o mundo em volta e fica “comovido”? As pessoas sucumbem muito facilmente e fraudam os seus sentimentos. Elas querem ter sentimentos prontos, e então “chocar-se” e “comover-se” são os mais fáceis. Os mais burros. Exceto em casos raros, senhor Zuckerman, o choque é sempre falsidade. Proclamações. Na arte não há lugar para proclamações! Tire essa sua adorável merda do meu escritório, por favor.”
(Diálogo entre o professor de arte Leo Glucksman e seu aluno Nathan Zuckerman, p. 288 e 289)

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Casei com um comunista
Philip Roth
Tradução Rubens Figueiredo
Cia das Letras

2000

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Aulas de olhar de novo – Uma leitura de Fábulas portáteis




Por Adriane Garcia


Por esta semana, estive lendo o livro Fábulas portáteis (Patuá, 2016), de André Ricardo Aguiar. Minto, por esta semana, estive com um portal nas mãos, cujo formato era de livro, mas, na verdade, o que eu fazia era atravessá-lo, nos tempos intermitentes em que havia tempo para ler; atravessava-o e me dirigia (era dirigida?) para lugares, interior de objetos, e situações muito insólitas.


André Ricardo Aguiar, seja na sua poesia, seja na sua prosa (repleta de poesia), é um autor da imaginação. Seu cérebro, quando escreve, pensa na rotação infantil, mas utiliza todas as ferramentas que o adulto lendo (Cortázar, Kafka, Ionesco, Becket...), aprendeu. O resultado é um trabalho inventivo, lúdico, potente, que, parecendo brincar, revela as várias facetas da vida, e elas não são todas alegres.


Há um certo disfarce nos contos e crônicas de André Ricardo Aguiar, uma espécie de filtro sobre filtro, camadas. Por baixo delas, por baixo do espanto, Aguiar está nos dizendo que a vida é muito pouco se, como nos ensina Cecília Meireles, não for reinventada. Talvez seja mesmo insuportável.


O livro tem oito partes, intituladas Sofá, Despertador, Ovo, Cama, Chuveiro, Escada rolante, Tamanduá, Sombra. Mas o leitor não pense que o sofá, o despertador, o ovo, a cama, o chuveiro, a escada rolante, o tamanduá e a sombra são os nossos velhos inertes conhecidos assim nominados. Claro que não. Os contos que compõem cada parte revelam uma criatividade capaz de animar as coisas inanimadas e fazer cenários e objetos tornarem-se protagonistas de histórias.


"Despertador
Pequeno terremoto sonoro, estojo onde se guarda o susto acionado por hora marcada e violento enfarte de seu mecanismo lógico-neurótico que pode ser desativado por sistema de travamento ou súbito murro e palavrões." (p.31)


Entre o insólito, o terrível, o humor, o trágico, o mistério e o sonho, Fábulas portáteis leva o leitor a olhar para a realidade com olhos de primeira vez; olhar que só é comum nas crianças e nos poetas. O livro de Aguiar é um convite ao mágico e, ao mesmo tempo, por oposição, a uma reflexão sobre a realidade e seu deserto. O que Aguiar faz neste livro, para além de nos divertir e assombrar, para além de nos transformar em projetores de filmes surrealistas que se passam dentro de nossa própria cabeça, é que nos perguntemos:
Quando foi que perdemos isso? Quando foi que, de modo tão infeliz, crescemos? Quantas vezes nos deixamos esquecer da nossa capacidade de ver através dos espelhos?


Um livro, sobretudo, delicioso.


Composição infantil


Eu capturava réstias de sol com vários espelhinhos; consegui guardar uma delas, sem o consentimento da lua, altas horas da noite. Em compensação, na manhã seguinte, vi uma réstia de sombra, de sol apagado.
Eu inventava doenças imaginárias. Uma vez peguei febre pelo cabelo. Causava arrepio e palavras que saíam de mim que ninguém entendia. Na verdade, causavam Intendimento, com i mesmo. De outra vez, fui buscar num quarto lotado de fotos antigas uma doença chamada Mnemonia. Lembrava de coisas da minha vida que não tiveram tempo de acontecer, mas que aconteceriam se eu tivesse mais tempo. Com doze anos, lembrei o suficiente para criar a história de três cidades, incluindo moradores, genealogia, etc. Mas a doença que mais me derrubou foi susto familiaris. Eu me contagiava de tios, primas, avós, tudo dos séculos de trás e em cada tosse ou espirro me nasciam mais parentescos.
As senhoras, ao fim da tarde, varriam folhas e formigueiros. Os moços varriam conversas e causos. O rio varria a água. A tarde varria o sol. Só eu vivia nos invernos da casa, contando quantas formigas, quantas gotas d’água fugiam para o indefinido. Minhas ocupações do ócio levavam horas. Pensava em sofás que sofriam de asma, almas do outro mundo dentro da cisterna, punhos de redes que esmurravam paredes.
Penso que adoeci de vida, quando nasci.”
(p. 105/106)
***
Fábulas portáteis
Contos
André Ricardo Aguiar
Ed. Patuá
2016



quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Caótico para retratar o caos – Uma leitura de Arame farpado





Por Adriane Garcia

(...)
É certo que nasci para nada e nascer para nada é libertador:
nascer para nada não me exige títulos,
não me assinala vencimentos,
não subtrai o que sou.
(...)” p. 38

Conheci o trabalho de Lisa Alves pela internet. Li alguns poemas da autora, espalhados por blogs e revistas deste infinito universo virtual. De um poema que lia, era levada a outro, motivo pelo qual, fui em busca da poeta e seu livro Arame farpado (Lug editora, 2015), cuja primeira crítica eu já havia lido no recomendado A nova crítica, de Sérgio Tavares.

O que havia me chamado a atenção no trabalho de Lisa era a linguagem tão contemporânea, direta, aliada a um vocabulário rico (sem ser, de forma alguma, anacrônico) e cheio de referências (literárias, históricas, geográficas, cinematográficas...). Ao mesmo tempo, uma rebeldia e uma coragem. A rebeldia de assumir o mundo que é o mundo e uma coragem de denúncia e de reflexão sobre o caos. Ao encontrar o livro, vi que essas características acompanhavam toda a sua coletânea de poemas.

Arame farpado, na própria forma, é um tanto irregular. Até mesmo o ritmo, a maneira de utilizar ou não estrofes, espaçamentos, leva, ora a momentos melódicos circulares, ora a momentos sincopados. No princípio, tive mesmo um incômodo, alguns de seus poemas, abertamente políticos, poderiam beirar o panfletário – mas ela sabe não atravessar a linha tênue  há algo que foge um tanto do que nos acostumamos (apesar de todas as vanguardas, hoje antigas) a considerar como “limpo”, “lírico”, na poesia “correta” e tantas vezes insossa. Mas a verdade é que Lisa Alves faz em Arame farpado um retrato, um grito, absolutamente coerente com o país onde escreve (a terra do sol de Glauber), com o mundo que chega à sua percepção, à nossa percepção, o mundo terrível dos atentos. Como a poesia, estando viva, não se sujaria com um mundo destes? Para que serve uma poesia que não tem consonância alguma com o tempo em que é escrita? Um bom livro nos faz perguntar muitas coisas.

Com inteligência e sensibilidade, Lisa Alves nos leva à viagem insólita de pensar e ver o planeta que habitamos; muitas vezes, faz isso de modo inesperado – sujo e exuberante. Sua liberdade de elaboração (aliás, liberdade é uma palavra-chave na poesia da autora), bem articulada ao seu/nosso tempo, pode tanto nos colocar nas Minas do Barroco, cheias de conservadorismo e tradição, quanto na Faixa de Gaza, onde crianças palestinas são assassinadas por Israel, com a mesma frieza e pragmatismo com que judeus foram assassinados pelo Nazismo.

Na geopolítica, sua crítica é direcionada ao capitalismo e seus tentáculos, como a manipulação midiática ou o uso político-social das religiões, não escapando orientações de esquerda ou de direita, ou mesmo a imundície de Brasília. O espírito em Arame farpado é anárquico. No mesmo cenário, Lisa utiliza-se de seus poemas mais confessionais para falar de amor e, por esta via, expressar-se quanto às questões de gênero, a condição da mulher e sua ancestralidade, a condição da mulher homossexual e o machismo em nossa sociedade. A vida e a morte não poderiam escapar à sua poesia. E não escapam.

Construída com um discurso farpado, agressivo, de resistência, há um tipo sutil de delicadeza nos versos de Lisa Alves, muito bem retratados pela capa de seu livro. Palavra de aço, vontade drummondiana de ir de “mãos dadas”.


[o descobrimento]

Eles caminhavam em busca de uma terra
com rios, lagos e água abundante.

Eles defendiam-se do sol com tecidos
especialmente feitos para proteger a pele da invasão ostensiva dos raios.

Eles construíam casas em qualquer local
propício para uma nova cerca.

Eles não cansavam, eram dromedários
capazes de seguir em frente até darem de cara com o final.

Eles não choravam, eram hienas, seus
lamentos pareciam risadas com o poder
de afastarem os inimigos de perto.

Eles não se machucavam, eram elefantes
capazes de segurarem um dos seus em
qualquer momento de dificuldade.

Eles não fugiam dos obstáculos, eram macacos,
pulavam e suportavam qualquer tipo de superfície.

Eles mergulhavam no mundo mais profundo,
eram peixes e desbravavam qualquer oceano
em busca de alimento e abrigo.

Eles nos descobriram e até hoje não encontramos
o antídoto certo para esse resfriado.



[o tear de gaza]

ATO I: A AGULHA

Contaram que
em Gaza duas crianças
brincavam de tabuleiro
quando a Estrela de Seis Pontas
expediu um míssil que emudeceu a casa inteira.

(vermelho, cinzas e fogo)

A mãe (em seu tear) acolheu
a notícia através do padeiro e logo após
cravou uma agulha no coração (repetidas vezes)
enquanto proferia uma maldição repleta de pranto:

Oh, filhos de Israel!
Não haverá espigões para resguardarem vossas rosas.
A agulha que me lança
nos braços dos meus antepassados
derramará veneno sobre
a ceifa futura e
teus filhos não terão mais mãos
para brincarem com tabuleiros de usura”

Dizem por aquelas trincheiras que
para cada filho assassinado em Gaza
há uma maldição professada contra os seus inimigos
até o ultimar de uma quinta geração.

ATO II: SILENCIADORES

Pelo cadáver lançado
a mais de cem metros.
Pela pegada de sangue
da mãe rebelada.
Pelos filhos escoltados
ao futuro orfanato.
Convocamos um minuto de revolta por Gaza,
pois o silêncio, até hoje, só serviu de munição.

ATO III: ANTROPOFAGIA

Dois foguetes
para cada “Não” inconfesso.
Devorarei os ossos de meus filhos
quando não sobrarem mais suprimentos e
para que não se tornem iguaria basilar do Inimigo.

Insurgente alma,
durma nessa carne
nomeada corpo
e não desperte mais pelas manhãs – nem labute
ao lado de nossos fantasmas.

Gaza, eu não desejo mais nenhuma noite.



[non cacare nec abieris rubus]

Ergo uma religião que sangra metáforas.
Tracejo a pele com a pena que pagas por viver.
Favoreço toda crença em figuras inertes e inanimadas.
Minha cabeça gira 360 graus e flutua em nuvens artificiais.
Silício reconstitui meu útero – menstruo alianças binárias.
Fluir é desastroso na passagem para o nível gasoso de ideias coletivas.
Permaneço então na base de uma pirâmide de palavras obsoletas que
não cagam e nem desocupam a moita.

***
Arame Farpado
Lisa Alves
Poesia
Lug Editora
2015