quinta-feira, 29 de junho de 2017

Quando a decência ganha um sufixo de interrupção – uma leitura de Dec[ad]ência, de Manoel Herzog




Por Adriane Garcia


Estive por uma semana lendo o romance DEC[AD]ÊNCIA, de Manoel Herzog (Ed. Patuá, 2016). O que quer dizer que estive por uma semana rindo muitíssimo e assombrando-me diversas vezes. Como falamos aqui em Minas (eu me repetia a cada capítulo): “Tem cabimento?”

Dec[ad]ência conta a história de Sérgio, um psicólogo com fortíssimo e irreparável complexo de Édipo, que se envolve com uma multidão de mulheres, entre elas, uma mulher mais velha, B., também psicóloga, vizinha de consultório. Durante o conturbado romance (que era para ser apenas uma transa), o leitor terá a chance de conhecer este protagonista: oportunista, cínico, egoísta, desonesto, machista, homofóbico (quiçá gay enrustido), agressor de mulheres, palestrante motivacional no âmbito da auto-ajuda, e vítima de uma gravíssima prisão de ventre, entre outras revelações. Como rir disso? É aí que entra a linguagem.

A narrativa é construída supostamente por um ghost-writer, GW. Porém, há uma briga constante entre o protagonista e o “escritor” para tomar as rédeas do livro. Com uma falta de talento confessa para a escrita e tendo lido pouquíssima literatura, por odiá-la, Sérgio é obrigado a contratar GW, “um advogado de Santos que tinha um cacoete machadiano odioso”. Nesta brincadeira de chamar o leitor, constantemente, aos mecanismos da feitura do livro, Manoel Herzog (GW? Sérgio?) consegue nos imbricar no seu jogo. Mas essa é apenas uma das maneiras de Herzog nos fazer rir.

Em Dec[ad]ência, o deboche é a marca constante da forma. Herzog debocha dos próprios termos, do uso de parênteses, mesóclises (ah, estamos fartos de mesóclises!), aliterações, jogos de palavras. Ao fazer isso, desarma o leitor para o modelo em que o livro é escrito, habilmente, coloca-o de modo natural na leitura, como se fosse contemporâneo escrever à moda antiga, por exemplo, usando verbos no pretérito mais que perfeito.

Poderia um desavisado entender que falo de uma comédia, mas, para além da forma, no tema e seu tratamento, na construção de seus personagens, Manoel Herzog traz uma grande tragédia. Seu humor, comicidade e ironia muitas vezes alcançam o grotesco. É o humor que violenta, o humor ligado à crueldade, o “humordestruição” como vivência irrestrita da crueldade do qual falou Artaud. E é o humor revelação: aquele que me coloca (ridente), diante do objeto (risível) e me faz perguntar: qual a minha relação com isto de que rio?

A piada, em Dec[ad]ência é a própria vida e sua precariedade. É o indivíduo, a doença e a morte, é o país, é o cidadão de bem, é todo o sistema fascista germinado e em pleno crescimento entre nós. Como quem apenas conta uma piada (truque de bobos da corte para que a verdade fosse dita sem que suas cabeças fossem cortadas), Herzog denuncia o homem que sabe usar o sistema, que faz sucesso a qualquer custo, que não se importa com absolutamente nada para além do seu próprio umbigo e que por detrás de insuspeitada decência, desce, decai. Como quem apenas conta uma história centrada num indivíduo, Herzog denuncia a pequena e privilegiada parcela brasileira da população que se incomoda que aeroportos passem a abrigar gente que jamais deveria ter saído das rodoviárias.

De Pirandello, em O humorismo, a afirmação de que “o humor não reconhece heróis; diverte-se em desmantelar, em decompor mesmo quando não seja isto coisa agradável”. Vamos rindo de um homem e de suas vítimas, do que nos conta e de como nos conta, Herzog, sobre seu anti-herói, aos poucos caminhando para a fatalidade, não sem antes fazer uma incursão gananciosa pelo mercado da fé, fartamente representado pelas igrejas neopentecostais brasileiras. Os de estômago muito sensível talvez devam pegar o livro bem avisados, também os do policiamento da linguagem, os preocupados com a vigilância do politicamente correto em literatura: Herzog não alivia, faz tudo pelo seu personagem.

Riso para a reflexão e o reconhecimento. Empreitada corajosa para leitores dispostos ao susto. Recomendo muitíssimo. E “fiquem tranquilos: nenhum humorista atira para matar” (Millôr).

A antessala do consultório de Beatriz ostentava um bigodudo autorretrato de Frida Carlos, pintado não sei por quem. Por que cazzo venho a me lembrar daquele autorretrato de mme. Carlos, afinal? Óbvio que por força de uma livre associação, um conceito tão corriqueiro em psicologia corporativa, focar é essencial pra gente poder ter mais qualidade de vida, segundo o escólio de Theodore Adorno, atravessado pela hermenêutica de Lair Ribeiro. Eu confesso que sempre nutri uma antipatia gratuita por Frida Carlos, essa chatíssima pintora da modinha que  não fez outra coisa na vida que se autopintar a si mesma e reclamar de sua infertilidade e alimentar a loucura de uma legião de sua infertilidade e alimentar a loucura de uma legião de doidas mal-amadas. Beatriz a idolatrava, como se pode concluir. O bigode de Frida a mim parecia melhor aplicado no rosto angelical de uma outra Beatriz, Beatriz Preciado, grande psicóloga espanhola proprietária de um buço e uma teoria invejáveis.
A minha antipatia por Frida se fez mais acentuar no dia em que Beatriz, não a Preciado, mas a minha amada B., arrogou-se no direito de criticar a aquisição que eu e Saulo fizemos para a antessala de nossa empresa, duas lindas telas-painel de Romero Britto. (p.44 e 45)

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Dec[ad]ência
Romance
Manoel Herzog
Patuá
2016

segunda-feira, 26 de junho de 2017

O avesso da lâmpada de Demetrios Galvão – Poesia, silêncio e memória: um antídoto para a cidade

Por Adriane Garcia

Em O avesso da lâmpada, Demetrios Galvão constrói uma poesia inteligente, rica e sensível. Seu vocabulário, recheado de metáforas e construtor de belíssimas imagens, utiliza combinações que alcançam um lirismo bem medido, sendo, ao mesmo tempo, atual e contundente. Dos termos coloquiais aos da biologia ou geometria, Demetrios dispõe de suas ferramentas realizando um projeto bonito e coeso.

Três ideias me chamaram a atenção durante a leitura: a memória, o silêncio, a cidade. Neste livro, o poeta expõe a necessidade do silêncio e da memória como formas de sobreviver no espaço que chamamos cidade, entendida tanto como espaço real, demarcado, quanto cidade vivenciada, única porque subjetiva, pela qual transitam o poeta e seus afetos.

Do exercício da memória e do silêncio, a fantasia, a poesia, o poema. “Varandas” para embelezar o cotidiano cinza na cidade precária e em decomposição. Em O avesso da lâmpada, o poeta sabe que guarda tesouros para poder prosseguir entre “dragões” de cobiça e poder, que tudo destroem. Nas entrelinhas, toda uma crítica social e política, que envolve a frieza do capitalismo, a destruição das comunidades indígenas (o passado, a memória), a exclusão dos menos favorecidos, a continuidade de um sistema de capitanias hereditárias. Ao mesmo tempo, a resistência, a amizade:

“nós, rinocerontes da ternura
nós, rinocerontes prometidos para a extinção
conhecemos bem os dragões da cidade,
os seus disfarces alcalinos, suas gírias oblíquas...”

Não há ingenuidade. A poesia de Demetrios sabe o chão onde pisa – sabe, inclusive, sobre o chão da literatura brasileira, seus círculos de luta por manutenção de poder – e constrói beleza a partir do dilaceramento dos sonhos, com a insistência nos sonhos:

“na margem do silêncio esférico
as árvores frutificam
uma espiritualidade indomável”

Forças primitivas são evocadas, a liberdade, a própria poesia cuja proximidade maior é alcançada pela criança. Provavelmente, é desse olhar infantil, tão íntimo da magia e do encantamento, que Demetrios conseguiu uma imagem como esta, aliado, obviamente, de muita leitura:

“quando o fogo alteia, sobrenatural se torna
tua arcada de medusa.
As tatuagens arcaicas grafadas nos ossos
emergem faiscando.”

O mundo interior se apresenta munido de soluções muito particulares para conviver com a dor, a insuficiência, a solidão, os fantasmas da insônia, a miséria. É no avesso que algo simples como tomar um café pode se transformar num ritual de lembrança e mesmo num exercício reflexivo sobre a história; é também no avesso que se dá o silêncio, capaz de estabelecer a comunicação consigo próprio, com os livros ou com a natureza. Aliás, no livro de Demetrios, a natureza apresenta seu potencial xamânico, de forte ligação com o sagrado, tudo em contraste com a artificialidade e a parafernália que, o tempo inteiro e sem descanso, transformam, remodelam, formam e deformam os espaços urbanos, deixando o ser perdido e em busca de referências. No avesso da lâmpada o seu escuro, o seu silêncio, o grito da identidade, a sua arma. O antídoto para a multidão sem rosto das cidades.

“a voz do abismo

como pensar no futuro
sem pronunciar a palavra medo?
a harmonia da morte não desafina
as águas não trazem alívios.

conheço uma mulher
que não sai mais de dentro de si.
desaprendeu a pronunciar “felicidade”.
– a família teve que sepultar alguns nomes.

o desencanto assalta a multidão
o terror estremece as fibras do afeto
e esperamos a queda em um campo minado.
– existe um abismo que não se cala.

as mães se pintam para a guerra
com o leite que alimenta a humanidade.
levantam o punho e perfumam as ruas
com sua coragem iluminada.

– a esperança transpõe as fronteiras armadas
resiste em assentamentos de plástico
e se salva em um abraço sem idioma.”


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O avesso da lâmpada
Demetrios Galvão
2017
ed. Moinhos




terça-feira, 20 de junho de 2017

Dyonelio Machado, O cheiro de coisa viva - Introdução, seleção e notas de Maria Zenilda Grawunder



Interessantíssimo livro. A introdução de Maria Zenilda Grawunder, acrescida da seleção de entrevistas e anotações do próprio autor, trazidas a público pela organizadora, compõem um rico panorama sobre Dyonelio Machado, o escritor, médico e político rio-grandense, mais conhecido por seu romance Os ratos.

Tanto sua trajetória política (Dyonelio foi preso político na Era Vargas) quanto literária podem ser descobertas neste livro que ainda traz um inédito do autor, o romance O Estadista. 

Em O Estadista, Dyonelio descreve as relações patrimonialistas da República Brasileira, os vícios, favorecimentos e a falta de comprometimento ideológico dos políticos, cujo compromisso se dá apenas com o poder e tudo que dele se possa usufruir, esteja de que lado estiver. Na condução de seu protagonista, Dantas, o rapaz ambicioso que não mede esforços para galgar os mais altos postos, usando inclusive de relações íntimas com mulheres associadas a homens poderosos, Dyonelio leva o leitor aos bastidores da política nacional. 

O livro foi escrito em 1926 e continua mais atual do que nunca. 

segunda-feira, 5 de junho de 2017

A morte de Ivan Ilitch - Tolstói e a perfeição ao falar sobre a morte




A novela A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, é, sem dúvida, dos mais perfeitos relatos e reflexões feitos em literatura sobre a morte.


A narrativa parte do enterro de Ivan Ilitch, caminhando, em seguida para a descrição do que fora sua vida de magistrado, marido, homem correto no que tange às convenções sociais. Sem deixar de notar a crítica ao estamento burocrático russo, o leitor, ao acompanhar os últimos dias de Ivan Ilitch, vai se deparar com um texto que assombra, pela sinceridade e genialidade com que a morte é tratada. No fundo, a grande pergunta é "qual a vida que vale a pena ser vivida?".

Procurando o sentido da morte, Ivan Ilitch procura o sentido da vida, das dores, do sofrimento. O leitor se surpreende com a forma com que Tolstói constrói esta "resposta". O último capítulo da novela é um dos melhores capítulos da literatura universal. Um livro brilhante, genial, fluido, cruel, compassivo, "demasiadamente humano". 

"O exemplo de silogismo que aprendera no compêndio de lógica de Kiesewetter - "Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal" - sempre lhe parecera exato em relação a Caio, jamais em relação a ele. Que Caio, o homem abstrato, fosse mortal, era perfeitamente certo; ele, porém, não era Caio, não era um homem abstrato, era um ser completa e absolutamente distinto de todos os demais. Ele fora o pequeno Vânia, com sua mamãe e seu papai, com Mítia e Volódia, com os brinquedos, o cocheiro, a ama, depois com Kátienka e com todas as alegrias, tristezas e entusiasmos da infância, da adolescência e da mocidade. Porventura conheceu Caio o cheiro da pequena bola de couro listrado de que Vânia tanto gostava? Por acaso Caio beijava a mão da mãe como Vânia? Era para Caio que a seda do vestido da mãe fazia aquele frufru? Fora Caio quem protestara, na escola, por causa dos pastéis? Tinha Caio amado como Vânia? Seria Caio capaz de presidir, como ele uma audiência?
"Caio é de fato mortal e, portanto, é justo que morra, mas quanto a mim, o pequeno Vânia, Ivan Ilitch, com todos os meus sentimentos e minhas ideias, o caso é inteiramente outro. É impossível que eu tenha de morrer. Seria demasiado horrível.""



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A morte de Ivan Ilitch
Liev Tolstói
Tradução: Boris Schnaiderman
Editora 34