terça-feira, 30 de maio de 2017

Movimento em falso, de Simone Teodoro. O gueto dos sozinhos.



Movimento em falso, de Simone Teodoro (Patuá, 2016) é um livro que contém sua organicidade na solidão. Em seus poemas, a poeta trata da inadaptação do ser que narra, o sentimento de ser “gauche” perpassa toda a construção, onde o que é visto é o avesso, a denúncia do inverso. Fato interessante, que salta à leitura, é a relação do eu lírico com o lugar/cidade. Simone Teodoro, em seus versos, faz perceber inúmeras vezes esse ser “torto” em sua geografia, no caso, Belo Horizonte, que observa e desnuda o seu campo de visão e atuação, numa crítica social e política de entrelinhas, convivendo com o lirismo e a beleza, sem deixar de dizer o que tem que ser dito.

Caríssima
o cheiro de merda
sabota a mentira do boulevard:

águas impuras escorrem nesses subterrâneos

infectas

como as bocas dos vermes que roem carnes ricas sob
os granitos luxuosos do Bonfim”

Poeta com os dois pés na tradição e as mãos na poesia contemporânea mais atual, Simone traz referências diretas de Rainer Maria Rilke, Carlos Drummond de Andrade, Adélia Prado, entre outros. Seu espaço de “ferramentas” vai do cânone cultuado às cantigas de roda e a leitura dos “marginais”. Assim, seu anjo terrível anda de metrô e tropeça em ataduras:

Me sento numa cadeira verde
recolhendo junto ao peito
uma imensa asa ferida”

Com uma imagética forte e bem construída, a poesia de Movimento em falso nos leva em viagem para (re)conhecer personagens tão atuais quanto universais: o gênero humano, que sofre por amor (e a desilusão amorosa em Teodoro é recorrentemente a imagem da estrela de vidro, que se quebra, ferindo de sangue as mãos); o amor romântico de uma mulher por outra mulher; a mulher que precisa se disfarçar de homem para andar nas madrugadas citadinas, sem sofrer a ameaça da violência, do estupro; a mulher que dispensa o falo e faz sua declaração aberta e corajosa contra o machismo; a criança que, numa referência ao Poema de sete faces, só pode viver um poema de uma única face, a da impossibilidade de ter infância; o cidadão de segunda categoria que não têm assegurados direitos mínimos e caga entre os automóveis, estacionados em frente à igreja de arquitetura imponente, art déco.

Usando palavras antigas, algumas vezes e propositalmente, Simone evoca uma nostalgia por um tempo que não lhe pertence (não que o desejasse), é sua forma de amplificar o sentimento de “estrangeirismo” também com relação à época: “me tornei alta/ e plena de antiguidades”. Do mesmo modo, utiliza quebras, com um antilirismo que atualiza o poema e o traz para o momento presente e sua contundência, conseguida por não querer disfarçar a realidade.

Em Movimento em falso, para se entender o eu lírico precisa se estender. Estender-se para o mito, para a natureza, para a fabulação de seus elementos: “as pedras cantam/ como se fossem de carne/ e doessem”. A necessidade de dialogar não pode contar com o outro, humano: é um mundo de desencontrados, a poesia é um diálogo consigo mesma e com os seres inanimados. O mundo da poeta não é o mundo no qual ela chora, há um descompasso.

Sem poder estar em Duíno, no alto da montanha, o que também não seria rima nem solução, Simone Teodoro trafega com sua mulher de chuva e resignação por entre o cinza. E constrói um livro capaz de afirmar do início ao fim uma identidade. Identidade singular no gueto dos sozinhos. O gueto de todos nós.


Cem segundos de espera

Antes de
atravessar a sinaleira
cem segundos de espera

A pressa dos carros
retalha a cor cinza do dia

Um vento quente
agita a aridez da tarde
Bacanal de coisas sujas e
minúsculas
pelos ares
e a porra de um cisco
bem no fundo do meu olho

Solicito a abertura dos portões
do inferno

Ameaça de tempestade
gota grossa escapa de cima
cusparada do demo

Esvoaçam as nossas saias
ah, se fossem asas
ah
encomendei uns livros da Colette
Vagabunda
Ingênua Libertina
My dear
sei que tulipas deveriam estar atrás das
grades

Como pode um sussurro doer tanto?

Não sou Lady Lazarus
Corda e janela serão minhas palavras definitivas

Vomito os homens que comi
Não te disse
mas um deles pisou
na barra da minha saia
e eu caí
(é tanta fratura no osso)
Senhoras e senhoras
pulem de um pé só”


***
Movimento em falso
Poesia
Simone Teodoro
Ed. Patuá
2016




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