segunda-feira, 24 de abril de 2017

Não, a afirmação de Bruna Mitrano



Por Adriane Garcia


Não comecei a ler o livro Não, de Bruna Mitrano (ed. Patuá, 2016) pelo prefácio sobre poesia e política, feito pela poeta e estudiosa Nina Rizzi, que é, por si só, uma aula. Sempre deixo por último os prefácios, apresentações, orelhas. Confesso que também não foi o texto escrito o primeiro que li, foram as imagens, as belíssimas e contundentes ilustrações que Bruna Mitrano criou para Não. Das imagens, você já pode ter uma ideia do que virá.

A edição do livro não se trai, a capa é preta, a cor estigma da negação em nosso país; negação de direitos básicos, de políticas públicas, negação das ações de inserção necessárias, quando o processo histórico se deu sobre expulsões, exclusão, assassinato, escravidão, sempre em prol de uma classe dominante branca, macha, insensível, racista, sem empatia e (serei redundante) de péssimo caráter. As letras vermelhas, no advérbio saltando no escuro, não deixam de remeter imediatamente à violência.

Os poemas de Bruna Mitrano trazem ao mundo audível (ainda que este mundo seja minúsculo) o mundo mais que populoso dos que nada têm, dos marginalizados, dos moradores pobres, brancos ou negros, das periferias e das ruas, das crianças brasileiras abandonadas, das mães abandonadas, das mulheres, vítimas constantes e fatais do machismo. Com grande parte dos poemas orbitando em torno da temática do aborto, Bruna acaba por retratar uma realidade acontecida e não o sonho delirante dos que querem legislar o corpo dos outros, mais especificamente das outras. Sem apologia a isto ou aquilo, Bruna conta, Bruna descreve, Bruna faz sentir. Preto no branco.

Se preto é, então, estigma, Bruna traz à luz também o fato conhecido e quantas vezes combatido (pois a verdade transforma): o de que preto é também a cor da resistência neste país. Resistência que começa com quatro milhões e meio de pessoas sequestradas de seu continente para compor um dos maiores êxodos forçados da história da humanidade. É no Brasil que essa diáspora produzirá efeitos que o Estado não foi (e não parece interessado) capaz de sanar. É também no Brasil que essas pessoas se reinventaram, com a força de suas culturas matrizes e a capacidade de absorver outras, sobrevivendo às piores condições possíveis. Mas também não é uma apologia à pobreza ou ao sofrimento o livro de Bruna. É um grito por justiça social sem ser em nada panfletário. É poesia com lirismo, ritmo, imagens, polissemia. É poesia que se recusa a ser somente poesia bonita, é poesia com o pé no lugar onde se vive. Se uma das funções da poesia é dar a ver, Bruna Mitrano a cumpre, retirando seu interior e entorno da invisibilidade.

Ao mesmo tempo em que no livro é forte a presença da problemática social, a voz narradora é intimista, chama para um ponto de vista, é subjetiva também, mostra a dor desta digestão que é, dentro, o mundo de fora. Sexo, fome, solidão, precariedade do corpo, degeneração da carne, asfixia diante do mundo, loucura e desejo são as forças cotidianamente presentes na luta pela sobrevivência exposta em Não.

Ao dar voz a questões como aborto e machismo, Bruna soma à nossa literatura contemporânea o ponto de vista das mulheres sobre o mundo em que habitam e atuam, onde falam sobre seu próprio corpo e sobre o modo como sentem as relações com o outro, o macho, inclusive. Juntamente com tantas outras escritoras que hoje vem transformando a literatura brasileira, cuja hegemonia masculina é inegável, Bruna registra a existência real de mulheres, de dentro, da experiência da opressão e do trauma.

É preciso matar para se libertar. Eis uma frase perigosa que podemos formular após ler Não. Uma frase metafórica ou literal. O que mataremos? O que lutaremos para que viva? Bruna vem nos dizer das escolhas que não nos são possíveis, quando nos tiram tudo, e faz isso na contramão. Ao fazê-lo, ela escolhe, como se fosse possível. E então passa a ser. Neste momento reencontramos Nina Rizzi: “ O gesto poético já é, e desde sempre, político. A poesia é uma insólita. Seu sentido se faz outro, reclama um outro e é arma contra a barbárie. Bruna Mitrano não nos deixa esquecer a máxima barthesiana que nos diz que a poesia é prática da sutileza num mundo bárbaro; não nos deixa esquecer a máxima nietzschiana: se o tempo é sombrio, a poeta pensa contra o seu tempo em nome do tempo por vir.”

De dentro da barbárie e de um corpo de mulher, no Brasil, ela faz poesia.

puta que pari um bicho morto
risco indócil na coxa
barulho oco dos coágulos esbofeteando a água da privada
estilhaços imagens
o enquadramento impreciso
aparar as arestas até triturar os ossos do rosto
as unhas perfuram lentas a boca grande calada
é preciso fugir pelas beiradas
sem alarde.”

***

Não
Poesia
Bruna Mitrano
Editora Patuá
2016




quarta-feira, 19 de abril de 2017

Eis o mundo de fora – O mundo de dentro, de Adrienne Myrtes



Não se entra no reino da morte vestido. Conheci as mãos de Raul, a saliva macia, sua boca aberta, engolindo-me pedaços e líquidos. Acordamos o dia no final da noite gozando o fato de sermos machos. Fomos homem um para o outro.” (Fala de Luis, p. 25)

Com o pouco tempo de que disponho para leituras (para a vida, realmente – visto que a Engrenagem nos assalta à mão armada, cotidianamente), li o romance de Adrienne Myrtes, Eis o mundo de fora, pelo Ateliê Editorial. Em três dias, ou seja, a leitura é muito fluida e instiga a continuar. Também, a autora conhece a sedutora arte dos bons primeiros parágrafos.

Com dois protagonistas que se revezam, Irene e Luis, Adrienne Myrtes, desde a primeira página – que já é o ápice de um drama – nos sequestra: estamos diante de uma tentativa de suicídio e não vamos mais parar. A forma absolutamente natural e verossímil não antagoniza com a linguagem literária tão bem cuidada. Excelente literatura é a que, sendo, nos faz esquecer de que estamos lendo literatura. Irene e Luis nos levam até suas vidas. Seus mundos de dentro atropelados pelo mundo de fora. O mundo de fora, o alimento de suas digestões e digressões.

Irene é a mulher que se tornou fria com relação ao amor, a que repele o amor conscientemente: “o que eu sabia é que me sentia sem corrimão, sem prumo, em resumo, que aquilo não era bom. Até doía. Pior, era um inferno. E aquilo era o amor. O amor cantado e decantado pela natureza humana. Amar para quê? Para dar chance a meu coração de me enforcar?”. Luis é o único amigo de Irene, ator, entre amores e michês, um homem que se recusa a sair da adolescência amorosa, e que vive a vida na intensidade dos cortes. Eros e Thanatos acompanham as personagens, Dionísio dá as caras e algumas cartas. Sim, é um livro sobre vida e morte, sobre amor e morte e também sobre esse amor puro e raro chamado amizade.

No meio da depressão de Luis, que mora com Irene, um telefonema faz com que ela tenha que voltar à cidade de sua infância. Consequentemente, rever a avó, Dona Auxiliadora, Tia Lurdinha, Léa, a mãe que nunca é chamada de mãe e Moacyr, o primeiro homem na vida sexual e amorosa de Irene. Rever a própria infância e a origem das primeiras despedidas. Juntos, ela e Luis encontrarão, nessa visita de uma semana, cada um a seu modo, motivos para novas reflexões e amadurecimentos. Irene terá que enfrentar tudo o que deixou para trás, fatos que a autora soube dosar com maestria, revelando-nos, aos poucos, o passado de sua personagem. Luis encontrará o distanciamento suficiente, e desejado, para se reencontrar e tentar esquecer Raul, ainda que seja para constatar suas repetições: “Na verdade gostaria de ser salvo pela distância. Ficar afastado da vida, receber uma suspensão. Não estar com algumas pessoas, não precisar contar histórias, enredar fatos, encontrar palavras para dar explicações. Explicações que não tenho nem para mim.”

Em Eis o mundo de fora, a dor assume uma questão central , tanto a física quanto a psicológica. Adrienne Myrtes, trabalha, por meio de suas personagens, a consciência de que somente a dor nos acorda para o que somos (iguais) e, ao mesmo tempo, um desejo fracassado de torpor, seja pelo excesso de verdade ou pelo excesso dos sentidos, para não senti-la tanto, pois o que somos não é notícia agradável. Nas palavras de Irene, “Estar vivo é estar doente, mas não sei lidar com a dependência gerada por isso. Odeio lamentação, lamúria, odeio com a mesma intensidade a falta de lamentação, o sofrimento digno, abnegado. Mártir. Alguém que se entrega aos vermes. Passivamente. A dignidade existe em olhar na cara da dor e rosnar”. A sinceridade das palavras dos dois personagens conversa com a nossa sinceridade, assusta-nos, como finalmente o faria um espelho verdadeiro. A autora não sopra a ferida, ela a escancara, até que possamos ver um coração que pulsa, não importa até quando, que, enquanto pulsa, flerta com a morte, mas quer pulsar. A morte é o evento marcado, Irene sabe que é a única coisa que sabemos. E, se Irene encara a morte de frente, Luiz encara a vida: “Descobri que prefiro ser atacado pela morte sem aviso, pelas costas.”

Eis o mundo de fora é também pontuado por paradoxos, ideias que Adrienne Myrtes subverte: a morte não é o desconhecido; a vida é que, sem controle algum, vem, mas não nos diz a que veio. A morte encerra a dor, mas sabê-la não é suficiente para executá-la. Imperativo é viver. Daí a admiração de Irene por Luis, ciente de que ele, sim, enfrenta fera de maior perigo. Luis, por seu lado, encontra em Irene o esteio de lucidez que o salva de tanta vida.

Aqui e ali, muito pontuais, pitadas de um humor inteligente e ácido, como no início do capítulo XXV: “Odeio gente gentil. Gentileza não é coisa natural, é sem princípios. Gentileza é invenção de vendedor.”, ou quando Luis é apresentado a Moacyr: “Essa era Irene tentando me convencer a me comportar como um criado velho, surdo-mudo numa peça renascentista. Fiquei quieto porque o pretenso amigo era um tesão e a vida é vaudeville.”.
As ilustrações, também feitas pela autora, tornam o livro um conjunto íntimo e rico. O romance traz trechos e mais trechos de grande beleza e reflexão. Copio um, entre os inúmeros que marquei (e que marcaram minha leitura).

A criança é a maior prova de que o homem não nasce bom. O homem apenas nasce. Todo o resto é tecido que fabricamos para proteger a pele. Para brincar de esconde-esconde.
Passei a infância me escondendo de minha maldade interior, sentindo pena das lagartixas mortas em favor das experiências necessárias ao exercício de minha curiosidade. A investigação científica era minha forma de brincar de adulto e eu precisava me sentir próxima as pessoas que me rodeavam. A morte fazia-se necessária para as descobertas, mas ela vinha costurada à compunção. A imagem do bicho morto, das vísceras expostas, da gordura do sangue, provocava certo sofrimento em mim. O sentimento corria em círculos, ao redor da irreversibilidade do feito. Uma vez morto, morto até o fim. Durante alguns minutos eu me arrependia e havia verdade nisso, cheguei ao ponto de fazer enterro de alguns animais depois de dissecados, arrumando-os em pequenas caixas cheias de flores. Acendia velas e fazia orações pela metade, imitando minha avó diante de seus santos. Mas isso não me impedia de matar outro quando precisava fazer outra experiência. Eu era criança e criança não tem alma.” (p. 39)

O mundo de fora pode ser também um sonho, sair de si, estar liberto deste jogo chamado vida, onde não há manual ou sentido e onde só nos resta caminhar: "A vida é a possibilidade que tenho no momento, o que me resta. Por isso o que tenho a fazer é me levantar da cama e começar o meu dia." 

Um livro excelente, de uma autora que merece ser lida, porque tem muito a dizer e sabe como.

***
Eis o mundo de fora
Adrienne Myrtes
Ateliê Editorial
2011


sábado, 1 de abril de 2017

O exercício da distração – De Kátia Borges



Por Adriane Garcia

O livro que me acompanhou durante esta semana foi O exercício da distração, da poeta Kátia Borges (ed. Penalux, 2017). Li-o duas vezes, para melhor ficar distraída. A distração que Kátia oferece é aquela que nos faz sair do mundo ordinário. Não à toa, a capa traz acrobatas em equilíbrio no topo do Empire State, uma fotografia de 1934. Mas que diabos fazem três pessoas numa performance arriscada e inútil? Que diabos faz Kátia, construindo um livro de poemas (antes: lançando um olhar para a poesia das coisas), recusando-se a ser simples engrenagem neste sistema que apenas quer nos consumir o tempo de vida, apertando seus parafusos?

O exercício da distração é uma resposta rebelde. Uma resposta rebelde silenciosa, visto que a poesia é capaz de se comunicar no silêncio do outro. É rebelde porque se insere no mundo do cansaço, e teima: “Dizer do medo, a coragem/com a qual dançamos a vida/sem descalçar os sapatos”.

Dividido em três partes, Como se fosse o órgão vivo, Fugas extraordinárias e As pequenas vilanias da cidade, o livro se comunica o tempo todo com seu título. A distração, a inadaptação, o mundo como um não-lugar para os sensíveis, para a sensibilidade. A máquina do capital a massacrar as pessoas, explorá-las, matá-las, cotidianamente, enquanto buscam a sobrevivência e o amor.
O amor, em O exercício da distração, é a “caça inútil”, a busca difícil, mas a busca da qual não se pode fugir, a busca necessária. O amor “arrasta os astros/pros lugares certos” e dá sentido ao que não tem. É o grande consolo, é a mão próxima, a possibilidade da dor compartilhada: “estou cansada de sentir este aperto no peito//amo esta mulher que diz que passa”. Ao mesmo tempo, não há ingenuidades, há uma maturidade nos versos de Katia Borges que não permite ilusões. A fantasia é proposital, a fantasia é um mecanismo de quem escolheu dar conta do mundo pelo seu avesso, mas com total consciência do processo. Este poema, que me lembrou dos momentos finais de Lorca, dá a dimensão do conflito tão presente neste trabalho:

Teu movimento

Antes que te chame
o pelotão de fuizilamento
repara o pássaro
apara o dia.

Há um olhar que se derrama
lento sobre a vigia
e graciosidade no andar
do carcereiro.

Antes, sim, que chamem
o teu nome, anota
num papel ou na parede
certo verso de cimento.

Na argamassa firme
teu movimento.

A distração é o exercício da liberdade, exercício cerceado, que só pode acontecer como desobediência, estranheza ou mesmo loucura, como a poesia. Já nos títulos de alguns poemas, a poeta brinca riscando palavras: Anotações para um poema sobre pássaros (sapos) flores. É assim, nas brechas, que se vai criando possibilidades de escolha para se inventar a própria autonomia. A poeta anda presentemente em sua cidade, indaga o mistério das perdas e sabe da resignação quanto a essas fugas, observa o mundo para além do que ele quer mostrar – falávamos sobre a distração como ato de rebeldia, a poesia como recusa à cegueira imposta.

Os poemas são de grande musicalidade, e há imagens imperdíveis, como em Hashi: “tão tristes os três tigres/do I Ching/espreitam o amor, a caça inútil// seria bom se descansassem/o peso das pernas,/seria bom se repousassem/o rosto nas patas”.

Por fim, O exercício da distração é um livro que traz paradoxos. Se por um lado, a distração parece que aliena, Kátia vem mostrar que, ao contrário, a distração é o que nos mantém vivos e acordados. E, obviamente, ela não está falando da distração permitida, da distração de massa, que quer fechar os olhos, banalizar até o ponto de não mais se poder perceber. A distração de que Kátia fala é aquela que nos abre ao desejo de molhar a planta que avistamos na varanda do vizinho, tão próxima ao nosso apartamento, afinal

“A vida é esse verde entre nós.

Talvez os biólogos nos expliquem
a fluidez do amor, a essa altura.
Serei melhor se lançar água
e, dessa distância que penso segura,
salvar uma begônia.”

Um livro lindíssimo. Para ler e reler.

*
O exercício da distração
Kátia Borges
Editora Penalux
2017