quarta-feira, 29 de junho de 2016

7 poetas hoje, no Caderno Pensar, do Jornal Estado de Minas, por Mario Alex Rosa



7 POETAS HOJE
Literatura brasileira contemporânea tem lançamentos de obras de fôlego no campo da poesia. O poeta e professor Mario Alex Rosa fez uma seleção de trabalhos escritos por mulheres
A poesia brasileira contemporânea vai bem, obrigado. Essa afirmativa assim, tão sem ajustes, pode dar a entender que tudo é sinal de qualidade. O que se pode notar hoje é que existem muitas publicações, inclusive com o crescimento de pequenas editoras. Fazer a varredura dessa enorme quantidade de livros é tarefa difícil, complexa e um tanto perigosa, pois qualquer reparo que um crítico possa fazer a um livro de um poeta contemporâneo pode condenar este a um dos círculos infernais de Dante. Ou mesmo quando cita apenas alguns, omitindo outros, como é o caso aqui, a cabeça do crítico pode ir a prêmio. No entanto, é preciso assumir riscos, pois assim, quem sabe, possamos comentar abertamente a poesia contemporânea em suas diversas manifestações.
Para começar, lembro aqui uma passagem do ótimo poeta Cacaso – um dos mais importantes pensadores de sua geração, que assim inicia uma resenha sobre a poesia da Olga Savary: “Uma atitude que se generaliza entre as mulheres poetas é evitar serem confundidas com a tradicional 'delicadeza feminina', para a qual os críticos sempre apelam quando querem reconhecer algumas peculiaridades em nomes como Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa” (revista Veja, 13.out., 1982). A propósito disso, passaremos em revista sete livros de poetas contemporâneas que publicaram obras em 2015. Adiantamos que, por limite de espaço, não há como detalhar certos procedimentos formais de cada autora. Todas as poetas têm mais de um livro editado, tendo Simone de Andrade o maior intervalo de publicação entre um livro e outro, cerca de 20 anos. Já a poeta Denise Emmer é a que mais lançou livros, mesmo porque é de outra geração. Enquanto Ana Elisa Ribeiro, Adriane Garcia, Ana Martins, Tatiana Pequeno, Leila Guenther e Simone de Andrade são todas da mesma geração. Das sete poetas, Emmer, Guenther e Ana Elisa atuam também em outros gêneros, como o romance e o conto.
Se Cacaso estava certo, é possível então sair do clichê “delicadeza feminina” e pensar a poesia das sete poetas como um lugar de autoras que escrevem independentemente dos vestígios que possam haver de delicado e feminino em cada escrito. O que importa dizer é que o poeta deve ficar alheio a esses adjetivos e deixar a palavra poética se impor como processo de transformação, tanto estético como ideológico.
Pensando assim, Aceno, infelizmente de pequena circulação, é o segundo livro de Tatiana Pequeno, uma poeta que acena para um lugar onde a linguagem de extrema depuração comove porque desola, comove porque não inibe o feminino, ainda que às vezes atue de forma hermética. A poesia de Tatiana Pequeno, ao contrário do seu sobrenome, tem na sua estrutura poemas narrativos, com versos longos entrecortados com grande habilidade no uso dos enjambements. Aceno, mesmo com seu intimismo, talvez seja o único livro das sete poetas que evoca momentos recentes dos protestos que se espalharam no Brasil nos últimos anos. Na forma de uma carta aberta (Carta para Mariana, depois dos protestos) embora íntima, temos um dos belos poemas desse livro grandioso.
Corpos em marcha, de Simone Andrade Neves, é quase a estreia da poeta mineira. Mas um começo muito promissor, pois traz uma poesia que, muito trabalhada na sua linguagem, consegue se esquivar da suposta delicadeza feminina. A sua delicadeza é conquista diária, por isso seus corpos (linguagem) se impõem numa perícia demorada na escolha de cada palavra, cada verso, e tudo isso sem perda do lirismo que, camuflado, se abre sutilmente para a descoberta do prazer, como no admirável poema Ovo. Simone de Andrade, sem dúvida, é uma das ótimas revelações na cena da nossa jovem poesia contemporânea.
Se na poeta mineira acima o delicado se esquiva, o mesmo não ocorre com a poesia da belo-horizontina Ana Martins Marques. Em seu terceiro livro (Livro das semelhanças), a poeta acentua o uso da metalinguagem, porém recoloca esse exercício numa visada amorosa, como na última parte do livro, onde o tema amoroso, um dos mais buscados pela poesia desde sempre, ganha delicadeza sem frivolidade. Ana Martins é daquelas poetas que pensa muito o que sente e, sentindo, recolhe-se para embaralhar os sentimentos. Talvez por isso a ironia seja tramada de maneira discreta, mas que está lá para dizer que o amor, às vezes, pode ficar ancorado num porto de alguma cidade, onde uma vez esquecido é lembrado. Que o digam as “cartografias”, um dos pontos fortes do livro. Portanto, as semelhanças aqui são apenas um espelho, digamos fosco, que nos adverte ser preciso desconfiar das doações.
Desconfiar é o que Ana Elisa faz no seu Xadrez. Mudando as peças do tabuleiro, a poeta não mede palavras para derrubar os reis. A sua delicadeza é dar xeque-mate com humor, mas um humor irônico, pois a aparente simplicidade da linguagem é na verdade algo sempre refletido, como no jogo que dá título à coletânea, que exige sensibilidade concentrada. Xadrez tem entre seus melhores resultados o deboche desses amores em tempo de muita mercadoria. A poeta sabe que o melhor antídoto para a poesia é a própria poesia e disso resulta um livro cuja qualidade é justamente não amenizar o sentimento amoroso. O ótimo poema Aqueles ciúmes da Playboy é uma das peças em que Ana Elisa não poupa críticas ao que poderia ser “fácil” dentro do tema do erotismo. Em Xadrez, mais uma vez a poeta mineira não joga na defensiva.
Adriane Garcia ganhou em 2013 um importante prêmio de poesia com seu livro Fábulas para adulto perder o sono. Nesse livro, a poeta brinca ironicamente com as fábulas, mas é no seu terceiro livro Só, com peixes que ela, num mergulho mais marítimo, ao modo dos escafandristas, embora ainda temático, vasculha os mundos abaixo de nós, sem esquecer a superfície. Um livro cujo feminino na sua liquidez nos faz lembrar a bela definição que o escritor americano Carl Sandburg escreveu: “A poesia é o diário de um animal marinho que vive na terra e que gostaria de voar”. Só, com peixes, em seus melhores momentos, essa máxima pode definir os caminhos que Adriane Garcia descobriu ao abrir e fechar seu livro com dois poemas que inundam de beleza essa poesia.
Saindo do círculo de Minas Gerais, Leila Guenther, nascida em Santa Catarina, é uma poeta mais vinculada à prosa. No entanto, publicou um livro cuja “delicadeza feminina” se dá justamente no equilíbrio dessaViagem a um deserto interior, título da coletânea de seus poemas. Na ótima orelha, o poeta e crítico Alcides Villaça pergunta: “Poesia feminina? Se a arte não parece ter gênero, as experiências o têm: chegam aos poemas de nossos dias vozes marcadas por um espanto de vida a um tempo estoico e dilacerado, ressurgido de incêndios, vingando um calor histórico”. Poeta que cultiva os silêncios, tem nessa escuta os melhores momentos nos poemas mais longos, nos quais podemos ouvir melhor os seus desertos interiores. Já os haicais, que ocupam uma parte do livro e que poderiam ser o lugar desses silêncios, talvez sejam mais exercícios do que propriamente novas formas de descobrir o vazio da arte do zen.
Denise Emmer, como dissemos, é a poeta mais experimentada, com uma obra vasta e que tem nesta nova reunião Poema cenário e outros silêncios um momento, digamos, sublime, com uma poética mais ao gosto elegíaco, porém sem se prender apenas à melancolia, pois a poeta bem sabe que é preciso olhar o mundo com suas durezas, como o belo Poema cenário, dedicado ao pai. Em tempo de muita euforia e pressa, a poesia de Emmer nos propõe um recolhimento para dentro de seus poemas, cuja voz baixa e grave pode recuperar um pouco da falta de delicadeza que afeta o mundo hoje.
Enfim, são apenas sete poetas, sabemos de outras, mas 2016 está aí e, quem sabe, a poesia possa ainda nos surpreender.


  (Estado de Minas, “Caderno Pensar”, 8/1/2016)

domingo, 26 de junho de 2016

Beijo, boa sorte – de Ana Elisa Ribeiro





Por Adriane Garcia


O título é uma despedida. Já nas epígrafes, um casamento e um divórcio. “Escrevo para me casar” e “por que você não para de escrever/ E passa a dizer tchau?” de Adília Lopes.

A capa, um pano branco de bolinhas vermelhas, sinaliza um vestido, uma saia, sinaliza a delicadeza e sugere alguma dor. Viro o livro, a contracapa é uma grande mancha de sangue sobre o pano do vestido. Respiro. Entro. Abro o livro.

A prosa vem entrecortada de poesia, de forma sutil, segue junto a uma frieza. Fica por conta do leitor certa compaixão pelos personagens. É um livro sobre mulheres, sobre a ótica das mulheres nas relações e de dentro delas. Ana Elisa Ribeiro tem o cinismo dos bons escritores, que dizem isso para dizer aquilo e dizem aquilo para dizer aquilo mesmo.

À fantasia de que mulheres portam-se ou portavam-se apenas passivamente num território patriarcal, Ana responde com donas de casa que colocam na balança homens, filhos e a si mesmas. Mulheres cujas escolhas só podem ser entendidas no terreno da falta delas, mas por isso mesmo, num universo reinventado onde cabe tanto o holocausto para proteger os filhos, quanto o assassinato do opressor. Sua denúncia ultrapassa os lares e vai às ruas, de dentro de um conto, do nada, de repente, Ana está denunciando a violência policial. Neste conto em que fala das prostitutas da rua Guaicurus, famosa zona de prostituição de Belo Horizonte, a autora faz isso como quem nada quer, inverte. E ao inverter, mostra-nos que a realidade é que se encontra com os valores trocados:

(…) Elas estão ali rezando, com as mãos em concha, pedindo que reabram os quartinhos em que atendem os clientes. E elas dizem que não, que não têm nada a ver com o tráfico de drogas. Quem trafica são os policiais militares. E ainda lhes arrancam parte do soldo recebido com sal na testa e cheiro de látex. E ainda xingam-nas. E ainda solicitam serviços de graça. Beijinho, beicinho, chupadinha grátis.”

Seus narradores variam, algumas vezes é o homem quem fala, e quando fala, é de sua boca que sai a confissão da violência ou da redenção que uma mulher lhe causara. Não raro, é de sua boca – como na mais dura e repetida realidade – que sai a acusação de culpa atribuída à vítima. Com recursos da melhor ironia literária, Ana Elisa Ribeiro cava os feminicídios, escancara-os, faz com que este bizarro apareça na obra de arte.

Ontem, saí do primeiro; saí do segundo; o terceiro soco pegou.”

O conto acima se chama “explicação na delegacia de ccm” e, prosseguindo, vamos notando, que onde existe opressão violenta, a violência pode mudar de lado.

A mulher idealizada de outrora é agora Maria da Purificação, a puta. A mulher insatisfeita no casamento fomenta sonhos de adultério – e realiza. A viúva dá uma festa, porque não suportava mais o marido. Outra se submete terrivelmente, e perde a vida para proteger a vida, única coisa que lhe resta, sabe-se lá para qual finalidade. A narrativa é perversa e com requintes de crueldade, mas há sutileza, muita e um humor ácido:

Desde que nos conhecemos me policio para não chamá-la pelo nome da falecida, mas não sei de onde vêm essas desgraças. A boca diz o que nem é sincero.”

Seu humor ácido, quer corroer o que é dado como natural:

Às vésperas do casamento, mandou-me um bilhete, representante máximo de sua franqueza presente e futura: não lavo, não passo, não sei cozer nem desejo aprender, não limpo, não seco, não espano. Baixei os olhos, verti uns pequenos arrependimentos antecipados e me casei.”

Neste universo, majoritariamente de histórias de quem não é feliz para sempre, sobra muito espaço para filhos infelizes, que continuarão a roda sem fim da infelicidade conjugal, do aprendizado do poder violento, do machismo, da humilhação pela subserviência e anulação de seres humanos.

Todo um universo frequentado por mulheres aparece nesta literatura, não podendo faltar a maternidade, que, obviamente, tratando-se de Ana Elisa Ribeiro, não seria decorada com o manto da Virgem Maria. A maternidade que ela nos dá, e que algumas mulheres escritoras começam – felizmente – a nos dar, é a maternidade real, cheia de cuidados difíceis, de resignações e sacrifícios, na maioria das vezes sem qualquer colaboração masculina; é a maternidade repleta de dúvidas e culpa por não se encaixar no que homens discursaram sobre a maternidade que sequer conhecem.

Creio que não seja necessário argumentar sobre a importância de livros como este no mundo que vivemos, especificamente nesta atualidade e no país em que ele foi publicado. Sabemos que nossa formação literária vem com mais lacunas do que simplesmente a dos livros que não lemos por falta de tempo. Há algo novo e complementar que esta literatura abordando o universo e o ponto de vista feminino traz. Este algo pode ser claramente reconhecido neste Beijo, boa sorte.

A literatura sempre foi o campo de se falar o que o mundo é e a melhor literatura sempre registrou o seu tempo.

No final do livro, Ana nos relata que escreveu estes contos curtos no blog A estante, entre 2001 e 2003. É. Ela mora na contemporaneidade desde sempre.

Beijo, Boa sorte
Ana Elisa Ribeiro
Editora Jovens Escribas
2015
72 páginas