quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

A perversa migração das baleias azuis – O olhar épico de Alberto Lins Caldas


Por Adriane Garcia

Já na orelha de seu livro, Alberto Lins Caldas nos escreve: “sem violência política não há poema, só poesia, só crônica, só relato da latrina do eu, esse pobre eu q todos sabem, todos reconhecem, todos gostam e entendem – essa coisinha q os poderes e o poder adora porq podem dominar, amedrontar, inverter, perverter, redirecionar e por “nas salas de aula, das salas de jantar e nos quartos”. o poema não é coisa de poeta mas de libertino.”

E eis que pelas cento e cinquenta e quatro páginas é essa fidelidade ao pressuposto acima que reconhecemos. O poema de Alberto Lins Caldas está fazendo algum caminho que não o usual, que não a estrada sinalizada e tão batida; seu poema despe-se do eu, de qualquer confessionalismo, para estender-se a uma história maior. É novamente a epopeia, milênios depois, que é retomada por Alberto Lins Caldas. E se Homero, ou as vozes que se fizeram de Homero, cantou os grandes feitos do homem e enalteceu as nobres virtudes ligadas à guerra, à vingança, à coragem e à ação, o autor de A perversa migração das baleias azuis vem dar-nos o final da história, agora, quando o resultado, escrito em seus versos, entrega-nos o nosso homem reconhecível, raquítico, reduzido, de cujos instintos só sobraram os piores: a humanidade que somos. Nossa guerra não passa de covardia, nossa vingança é substituída pelo medo e pela preguiça, nossa coragem nos faz valer menos do que valem os ratos e nossa ação – quando acontece – é na esperança de poder oprimir, jamais libertar.

Fosse uma pintura, os personagens de A perversa migração das baleias azuis seriam telas bizarras de Arcimboldo, o maneirista pervertido, em que todas as figuras se formariam por adição de comida, pois disso é feita a espiritualidade do homem em Alberto Lins Caldas, o predomínio da gula, o seu aspecto glutão que, na verdade, significa todo o consumismo desenfreado e a destruição dos ecossistemas. Neste sentido, não um Arcimboldo da integração com os elementais, mas ao contrário, um Arcimboldo da destruição em massa e, por que não?, lentamente.

O mais interessante é notar em Lins a sua proposital citação – seja explícita, seja implicitamente – de grandes obras, autores e personagens da literatura, incluindo-se a Bíblia e as fábulas de Esopo e La Fontaine. Durante toda a leitura somos colocados diante do grandioso, subvertido, para – ao mesmo tempo, e por antagonismo – sermos bombardeados com retratos contínuos de nossa pequenez e avareza. Isso, obviamente, aumenta o efeito de nossa percepção. É a tragédia grega, mais especificamente em Sófocles, dizendo-nos “não fugirás ao seu destino”, mas é a tragédia grega desvendada por Lins, cujo tom nietzschiano também é inequívoco: não há nada fora de ti.

● hoje so sei q é preciso pagar ●
● as contas q entopem a vida ●
● so fazemos isso agora ●

● sobre essas viagens ●
● não digo nada a ninguém ●
●nem como a coisa terminou ●

● o velho capitao inda dorme ●
● onde escondemos o corpo ●
● inda não sabe q ta morto ●

● agora é a dor nessa perna ●
● essa coceira no rabo as tosses ●
● sabendo q deus castiga ●

Neste sentido, impossível não pensar que A perversa migração das baleias azuis foge de toda metafísica, encontra-se com a fenomenologia, ou seja, Lins nos relembra que a verdade é provisória e informada pelos sentidos, de acordo com a experiência de cada pessoa; porém, não é uma verdade confortável entre pastores e ovelhas. Num ritmo impecável, de canção, em poemas narrativos, Lins discorre sobre o homem civilizado – no pior sentido – que já inventou verdades suficientes para não questionar mais nada. O homem de A perversa migração das baleias azuis é um ser anestesiado. E é do poeta o último esforço para fazer perguntas sem muitas esperanças de resposta, como neste poema, Jonas, composto de 5 partes, em que aqui transcrevo as duas primeiras:

● jonas ●
● ? como é a baleia por dentro ●
● a baleia viva ●

● tão vasto aquele abismo ●
● nela ali adentro ●
● jonas ●

● ? tem musica ●
● ? coisas vivas vivendo ali ●
● ? ha a respiração das ondas ●

● de todas essas ondas ●
● q podem ser o mar ●
● ? ha o mar jonas ●

● ou so a baleia ●
● a baleia sem o mar ●
● jonas ●

2

● jonas ●
● ? como são as noites ●
● as noites da baleia ●

● ? ou não são noites ●
● jonas ●
● aquilo dentro da baleia ●

●? Ou a baleia é deus ●
● torcido de mar e baleia ●
● travestido de dor ●

● porq a baleia jonas ●
● vc sabe e bem sabe ●
● é dobra de carne e dor ●

● se não sabia jonas ●
● saiba agora ●
● pra sempre ●

● porq deve haver ●
● depois da tormenta ●
● depois das viagens ●

● das viagens assim ●
● jonas ●
● como essa na baleia ●

● a hora do sono da razão ●
● porq a baleia jonas ●
● sem isso não sera ●

● jamais a baleia ●
● a baleia mesmo ●
● nem deus sera deus ●

● nem jonas sera jonas ●
● os dois na baleia ●
● como as ondas jonas ●

● as ondas do mar ●
● as ondas as ondas ●
● as ondas e a baleia jonas ●


Um livro de um mestre. Não menos. Questionador já na própria linguagem, A perversa migração das baleias azuis é sobre nosso corpo, nossa casa, nossa rua, nosso país, nosso mundo. É uma poesia-antena, pré-apocalíptica (mas o apocalipse já houve e não foi percebido), em que a religião também foi a arma da nossa derrocada. É o poema da falta de sentido, da desistência pela busca do sentido, de um tempo onde a tecnologia suplantou toda filosofia. Ao mesmo tempo, é, em si, uma crença na beleza, pois, de verdade, nenhum poeta que escrevesse esses versos, estaria livre de crer nela.

A perversa migração das baleias azuis
Alberto Lins Caldas
Editora Ibis Libris

2015

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Tirza, de Arnon Grunberg - Literatura com caleidoscópio



Por Adriane Garcia

Estive, por uma semana, às voltas com Tirza, de Arnon Grunberg (editora Rádio Londres). Tadeu Sarmento já havia devorado o livro e o recomendava com veemência. Assim, furei a fila de leituras e lá fui eu. Já nas primeiras páginas, sem nenhum arrependimento.

Tirza é um romance único, uma história envolvente do início ao fim. A ideia que me veio foi a de um caleidoscópio, brinquedo feito a partir de cacos de espelhos e cujas cores aparecem de forma inesperada.  Assim é o personagem protagonista,  Jörgen Hofmeester, um homem que vai nos dando os cacos de seus espelhos para que tentemos vê-lo inteiro, mas, como num caleidoscópio, o que vemos é desordenado e, ao mesmo tempo, íntegro. Hofmeester quer desaparecer.

A construção desse personagem é uma aula de composição. Dele, tudo se suspeita, mas nada assegura certeza ao leitor. O narrador, em terceira pessoa, parece estar constantemente a meio palmo de distância de Hofmeester. Essa proximidade faz com que o leitor sinta estar na casa, no quarto, na cozinha, na mente do protagonista; dá a impressão de que lhe acompanha o ato, lembrança, momento narrado, com a veracidade não dos fatos, mas desta única versão que possui, e que é totalizante.

Pai de família, abandonado pela esposa – que saiu em busca de seu amor de juventude – tendo ficado responsável pela educação das duas filhas, Hofmeester é um homem de meia idade, de classe média, procurando manter sua vida, cheia de fracassos, sob controle. E controle talvez seja a palavra chave deste livro. Para auxiliar a si mesmo na recomposição de si, o ser fragmentário que tenta não dar vazão aos instintos, Hofmeester resolve se alojar na paternidade. Quando a filha mais velha desiste da carreira acadêmica, sonhada pelo pai, e parte para a França, para ser proprietária de uma pousada, Hofmeester fica apenas com Tirza,  a filha mais nova, essa personagem que ocupa seu pensamento como uma obsessão, como a obsessão por uma salvação única, ou mesmo como a obsessão por uma amante. Quanto mais o protagonista pratica seu autocontrole, mais o leitor se vê diante de uma desconfiança. Tirza é um romance em que sabemos, todo o tempo, e ficamos em estado de alerta: algo vai acontecer. 

A narrativa se inicia exatamente no momento em que o pai começa os preparativos para a festa de Tirza, decidida a ir conhecer a África, após a formatura do ensino médio. Para agravar a situação, a esposa que sumira reaparece como se nada tivesse acontecido. Daqui, eu não poderia mais descrever a história sem privar o leitor das surpresas deste livro. Mas saiba, é um livro que vai longe, Arnon Grunberg nos leva a nós mesmos, como raça; à lembrança de algumas ideias psicanalíticas que desvendaram tanto sobre nós. Quanto custa ao humano civilizar-se? Qual o tamanho da angústia individual para formar o todo pacífico coletivo? Quanto desse todo é possível, já que a civilização gera pessoas doentes? Que tipo de ilusão é essa chamada civilização ou que garantia oferece? O que teríamos que extirpar de todos os seres humanos para obter uma civilização sincera, que fosse mais que aparências? Não por acaso, parte dessa história irá se localizar na África, continente de origem, continente que, no senso comum, ocupa o imaginário como o local das feras, da pobreza material, do encontro do homem com o solo, com a natureza, com o deserto. 

São quatrocentas e sessenta páginas, fluindo vigorosamente. Viaje com Hofmeester. O livro tem recebido muitas leituras e elogios. Arnon Grunberg os mereceu. 

"Tirza dava festas com frequência, mas esta noite era diferente. Assim como vidas, festas podem fracassar ou ser um sucesso. Embora Tirza não tenha dito, Hofmeester sente que muito depende desta noite. Tirza, sua filha mais nova, a mais bem-sucedida. Extremamente bem-sucedida, tanto por dentro quanto por fora.
Hofmeester arregaçou as mangas da camisa. Para se proteger das manchas, ele está usando um avental que comprou certa vez como presente de Dia das Mães. Do seu ponto de vista, está bastante másculo. Não se barbeava há seis dias. Não teve tempo. Logo depois de se levantar, era tomado por pensamentos que nunca tinha tido antes, não nessa proporção: planos, lembranças das filhas quando ainda mal podiam engatinhar, ideias que de manhã cedo lhe pareciam brilhantes. Mais tarde faria a barba rapidamente. Quer se mostrar bem-apessoado e charmoso. Os convidados deverão vê-lo desta forma: um homem que não viveu em vão.
Circulará com sushis e sashimis bem-arrumados numa travessa comprada na loja japonesa especialmente para a ocasião. Com este ou aquele trocará algumas palavras e dirá casualmente: "Prove o sashimi de lula." Um pai abnegado, isso é o que será . O segredo da paternidade: abnegar-se. O amor dos pais é o sacrifício silencioso. Todo amor é um sacrifício. Ninguém vai reparar nele. Também não há nada para reparar. (...)"


Tirza
Arnon Grunberg
Tradução de Mariângela Guimarães
Ficção holandesa
2015
Editora Rádio Londres

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

"Navegar é preciso; viver não é preciso": Um bote salva-vidas no naufrágio entre amigos


por Adriane Garcia


   Foi com grata surpresa que li os contos de Naufrágio entre amigos (ed. Patuá, 2016), de Eduardo Sabino. Não porque imaginava que não fosse um livro bom, mas porque constatei que era ainda melhor. Gosto dos livros que além de bem escritos – E Sabino é ótimo leitor – , emocionam-me, para o riso e para o choro. Gosto ainda mais quando um livro, realmente, faz com que eu saia do lugar, mude-me de cidade, de tempo, de conhecidos. Adicione-se a isso frases memoráveis, deixadas aqui e ali, como quem largasse displicentente um tesouro... ah, então a leitura torna-se um luxo.
   Assim, estive em Nova Lima (MG) com os personagens deste autor e fui, num jogo paulatino, entre as páginas, percebendo um naufrágio, dois, três, tantos. O naufrágio, esse ato universal.
   Sabino, em sua ficção, dá-nos um tanto de memória, mas, escritor ingênuo que não é, entrega-nos ele próprio sua suspeita, a de que a lembrança seleciona, elege, destrói, omite, refaz: "o inusitado é o rei no trono de ferro da memória".
   Na forma, o autor escolhe arejar os contos, dividindo os blocos de parágrafos pela passagem do tempo ou da circunstância, de maneira que a leitura fluida é privilegiada, com muita clareza, sem malabarismos, sem ostentações, sem tentar inventar a roda. É contemporâneo sem negar a tradição, inclusive de grandes ficcionistas mineiros, que reconhecemos, souberam nos dar um mundo, narrando-o com simplicidade. É o contador de histórias que consegue, perfeitamente, oferecer-nos uma arquitetura sem que fiquemos nos lembrando de sua engenharia. Sabino não quer se mostrar, quer comunicar. Uma literatura para encontrar o outro, irmanada na consciência do naufrágio coletivo.
   Do menino que é obrigado a ir à missa “Não existe nada tão ruim para uma criança quanto a obrigação de fazer silêncio na idade do barulho” ao avô amante de literatura “Aprendi com ele que a dúvida é uma condição da alma livre, não um pecado”, Naufrágio entre amigos nos apresenta um Deus que, se existe, vai, por gozo, desfazendo as coisas, recriando-as, como se gostasse da forma impiedosa de contar as nossas histórias, como se fosse divertido que encontrássemos, décadas mais tarde, nosso grande amigo de infância assassinado por homofobia.
   A leitura de Naufrágio é séria, mas encontra clarões de humor todo o tempo, porque os narradores de Sabino sabem que é preciso rir da própria tragédia, que é preciso trocá-la por palavras para que faça algum sentido. Mais, que as grandes tragédias, muitas vezes, são as pequenas: o desvalor que professores nos atribuem na escola, a conversão do músico ao dogma cego, o nosso afastamento voluntário e inexplicável das pessoas que amamos, a solidão da internet, a troca das relações reais pelas relações virtuais, hoje que pensamos que "navegar é preciso" e que "viver não é preciso", o engodo a que somos submetidos e submetemos.
   A maioria dos contos traz personagens adolescentes – crianças e adultos, por vezes – ensaiando a vida, dando os primeiros passos do fracasso para entrar no navio sem volta. O bote salva-vidas: a amizade. Não fosse isso, como no último conto, já teríamos sucumbido em buracos que se abrem na terra, em Nova Lima, em qualquer cidade do mundo.


Ela deu meia volta e ergueu a arma. O boteco silenciou-se e Afonso se transformou. Levantou as mãos e se pôs a tremer. “O que foi que você disse?”. Tia Nice puxou a trava do revólver e seu Jorge soltou um grito atrás do balcão. “Não faz isso, Nice, pelo-amor-de-deus”. Ela começou a alternar os alvos, dançando com o revólver na mão, enquanto eu gritava para irmos embora. Voltou a encarar Afonso. “Você não tem ideia de quantos bostas iguais a você eu já mandei pro outro mundo. Respeito é bom e eu gosto”.Depois mandou Afonso ajoelhar no chão do boteco e me pedir desculpas. “Não precisa, tia”, eu disse. “Precisa sim. Anda.”Afonso se ajoelhou e a obedeceu. A fala gaguejada, o bigode tremendo.  Depois eu apertei sua mão, Tia Nice guardou a arma e descemos a rampa do boteco abraçados e com um silêncio profundo às nossas costas.” (do conto Estouros, p. 27)

   Leitura recomendadíssima.


domingo, 27 de novembro de 2016

A Perspectiva da Morte: 20 (-2) Poetas Portugueses do Século XX - org. Manuel de Freitas



Ganhei esta antologia, de presente, da querida Dagmar Braga, poeta e grande incentivadora da literatura aqui, nestas terras belorizontinas. Demorei a poder estar neste silêncio e prontidão que a poesia exige para ser lida. Estando, nossa!, que tesouro.

Para quem, como eu, conhece pouco da poesia portuguesa, a não ser o mais óbvio, um desvendar e tanto (antologias servem para indicar caminhos, vislumbrar possíveis panoramas). Para quem conhece bastante, é um exercício delicioso da revisita.

Os dezoito poetas, nascidos entre 1900 e 1950 -  este o recorte temporal que escolheu o organizador - são Vitorino Nemésio, Ruy Cinatti, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, Carlos de Oliveira, Eugênio de Andrade, António Manuel Couto Viana, Mário Cesariny, Herberto Helder, Antônio José Forte, Fernando Assis Pacheco, Armando Silva Carvalho, Luiza Neto Jorge, A. M. Pires Cabral, Fátima Maldonado, António Franco Alexandre, Manuel Gusmão e José Amaro Dionísio. O organizador, Manuel de Freitas, salienta que os poetas  João Miguel Fernandes Jorge e Joaquim Manuel Magalhães, também com poemas selecionados para a antologia, preferiram não ser incluídos.

Impressionaram-me muito, neste livro, os poemas de Eugênio de Andrade, Mário Cesariny e Fernando Assis Pacheco. Posto aqui alguns deles. É, sem dúvida, leitura recomendadíssima:


"Cala-te, a luz arde entre os lábios
e o amor não contempla, sempre
o amor procura, tateia no escuro
esta perna é tua?, é teu este braço?,
subo por ti de ramo em ramo,
respiro rente à tua boca,
abre-se a alma à língua, morreria
agora se mo pedisses, dorme,
nunca o amor foi fácil, nunca
também a terra morre." 

(Eugênio de Andrade)



"Esta noite a loucura do meu ofício
privilegia os falcões;
vou morrer; à altura da boca
o mar pode ser a casa.

A manhã expulsará o sol do olhar;
fui algo para ver a neve,
para colher a transparente e verde
fragrância do ar.

Ninguém pode suportar de olhos abertos
o peso do mundo;
com a noite foram-se os cavalos;
partem para não morrer."

 (Eugênio de Andrade)


hoje, dia de todos os demônios
irei ao cemitério onde repousa Sá-Carneiro
a gente às vezes esquece a dor dos outros
o trabalho dos outros o coval
dos outros

ora este foi dos tais a quem não deram passaporte
de forma que embarcou clandestino
não tinha política tinha física
mas nem assim o passaram
e quando a coisa estava a ir a mais
tzzt... uma poção de estricnina
deu-lhe a moleza foi dormir

preferiu umas dores no lado esquerdo da alma
uns disparates com as pernas na hora apaziguadora
herói à sua maneira recusou-se
a beber o pátrio mijo
deu a mão ao Antero, foi-se, e  pronto,
desembarcou como tinha embarcado

Sem Jeito Para o Negócio 

(Mário Cesariny)




A Antonin Artaud


Haverá gente com nomes que lhes caiam bem.
Não assim eu.
De cada vez que alguém me chama Mário
de cada vez que alguém me chama Cesariny
de cada vez que alguém me chama de Vasconcelos
sucede em mim uma contracção com os dentes
há contra mim uma imposição violenta
uma cutilada atroz porque atrozmente desleal.

Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus de Vasconcelos?
Porque é que querem fazer passar para o meu corpo
uma caricatura a todos os títulos porca?
Que andavam a fazer com a minha altura os pais pelos baptistérios
para que eu recebesse em plena cara semelhante feixe de estruturas
tão inqualificáveis quanto inadequadas
ao acto em mim sozinho como a vida puro
eu não sei de vocês eu ão tenho nas mãos eu vomito eu
não quero
eu nunca aderi às comunidades práticas de pregar com pregos
as partes mais vulneráveis da matéria

Eu estou só neste avanço
de corpos
contra corpos
Inexpiáveis

O meu nome se existe deve existir escrito nalgum lugar "tenebroso e cantante" suficientemente                                                                                                                                      glaciado e horrível
para que seja impossível encontrá-lo
sem de alguma maneira enveredar pela estrada
Da Coragem
porque a este respeito - e creio que digo bem -
nenhuma garantia de leitura grátis
se oferece ao viandante

Por outro lado, se eu tivesse um nome
um nome que me fosse realmente o meu nome
isso provocaria
calamidades
terríveis
como um tremor de terra
dentro da pele das coisas
dos astros
das coisas
das fezes
das coisas

Haverá uma idade para nomes que não estes
Haverá uma idade para nomes
puros
nomes que magnetizem
constelações
puras
que façam irromper nos nervos e nos ossos
dos amantes
inexplicáveis construções radiosas
prontas a circular entre a fuligem
de duas bocas
puras

Ah, não será o esperma torrencial diuturno
nem a loucura dos sábios nem a razão de ninguém
Não será mesmo quem sabe ó único mestre vivo
o fim da pavorosa dança dos corpos
onde pontificaste de martelo na mão

Mas haverá uma idade em que serão esquecidos por completo
os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas

Haverá
um acordar

(Mário Cesariny)



Eu tinha grandes naus

Os amantes esquecem. A  Primavera volta.
A terra treme. E piam as aves em bando
vindas de Helgoland por detrás da serra.

Os poetas lamentam-se demais.
Gastam-se por vezes num choro muito fino,
quase impraticável. Querem ser ouvidos,
e vá de escreverem tal e tal desgraça.
Mas estão desempregados? perderam a mãe?
a chuva entra pelas solas com buracos?
Ou vão mover o mundo, as azenhas do mundo?

O teu olhar já não poisa em mim,
paciência, não morrerei por isso.
Iuri Gagárine lá foi pelo céu acima.
Aliás a vida tem recursos admiráveis.
Tudo isso fará a delícia
e o espanto dos nossos filhos.

Lamentam-se demais, acenam
com as suas dores particulares
a quem passa, que passa
por outras razões. Querem dedos suaves
na testa, um calor 
de lábios nas pálpebras molhadas.
São poetas, isto é, amantes em aflição.
.
Campainhas tocando ao mais pequeno vento.
Querem ser ouvidos, consolados, tapados do frio.
Temem o desprezo, a desolação ambiente,
os cães que ladram muito alto muitas vezes.

Mas o Maio volta
e eles consertam-se: coisas
da sua mecânica misteriosa.
Mesmo a terra, quando treme, treme
cheia de naturalidade.

Portanto não morri. Eu tinha grandes naus
aparelhadas na ribeira do coração.
Caíram árvores, camponeses gritavam
enquanto a chuva
mordia raivosamente as coisas do mundo.
"Paciência", dizia eu, "não morrerei por isso."
E esperava o sândalo e a canela.

(Fernando Assis Pacheco)



O garrote
(para Maria Mendes, minha mãe)

Ribeiras limpas acudi-me.
Vou ficar vivo enconstado
a esta memória de trampa.
Os meus olhos já foram brilhantes.
Sei fazer alguns versos mas nem sempre.
Eu narrador me confesso.
A guerra lixou tudo.

É curioso como se bebia
água podre.
Não falando no vinho, muito.
Durante os ataques doía-me um joelho.
Estou pronto, pensei.
Ninguém me conhece.
Os ratos são felizes.

Vocês não sabem como se perde a tusa.
De resto não serve para nada.
A melhor noite que eu tive
em Nambuangongo foi com uma garrafa de whisky.
Sei fazer versos mas doem.
Ninguém me conhecia dentro do arame.

O único joelho decente de Angola
embebeda-se no Norte. 
Vou para escrever e paro.
Deixei-me disso.
Sou feiíssimo ao espelho.
Recordação súbita duma litografia
castelhana: o garrote.
Não vos perdoo.


Suponho que a violência tem os dias contados.
Se não é assim é parecido.
Eu vi-os sair do quartel
com as alpergatas nas últimas.
Vai ali o Ocidente, escrevi.
Vai beber água podre.

E depois há um que pisa uma armadilha.
Houve um que pisou uma armadilha!
Sei fazer versos. Ou seja: nada.
O coto em sangue.
Neste ponto o narrador sofreia a imaginação.
Ninguém disse que me conhecia.
Conheço um rato, está em cima duma viga.
Serve para a gente olhar. 

(Fernando Assis Pacheco)

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Betzaida Mata e a alquimia da ferrugem



 Por Adriane Garcia


É manchando o teclado que escrevo este texto, enquanto imagino que se tivesse mar, ou se tivesse deserto em sua paisagem, Betzaida não nos daria exatamente este livro. Talvez porque seja mineira e entenda perfeitamente o efeito de se morar entre aclives e declives, o que faz num espírito visitar com os olhos e pés, constantemente, montanhas de ferro; poder reconhecer bem essa cor alaranjada que agora noto em meus dedos, após ler Homens e sucatas. Não sei se livros que nos limpam são tão bons quanto os livros que nos sujam.

São dez contos, narrados com a competência de quem sabe contar boas histórias. Mais: são dez contos narrados com a competência de quem sabe transformar uma história, que podia passar por comum, numa grande história. É que Betzaida é alquimista, tira das suas pessoas, seus personagens, uma dureza de ferro, percebe-lhes a precariedade, o tempo, o aprisionamento claustrofóbico dos espaços, da vida social e, num gesto compassivo e ao mesmo tempo impiedoso, pega esta ferrugem e nos devolve em humanidade. Sim, é grande. Sim, dá-se aos olhos dos sensíveis, mas pode ser ouvido e compreendido por qualquer um, pois estamos lendo uma autora que abriu mão da pirotecnia para ser simples. Sua prosa nasce de duas escutas, interior e exterior, por isso seus diálogos demonstram tanto domínio; é o nosso prosear, mas com requintes de literatura, uma engenharia que Betzaida Mata esconde tão bem, que pensamos que a história está mesmo acontecendo do nosso lado, que sabemos o timbre de cada voz que aparece.

Homens e Sucatas é um livro sobre o que está tão perto e o que está tão longe. São nossos relacionamentos, nossas indagações existenciais, nossa resignação, a falta de controle sobre um mundo, um universo, um multiverso que permite qualquer vida, todas elas e que de tantas possibilidades só poderia se tornar repetitivo. “Do pó viemos e ao pó voltaremos”. A mensagem do Gênesis se encontra com a mensagem da Física: “somos pó das estrelas”. Mas Araceli, essa personagem apaixonante e tão silenciosa, do conto Densidade Humana, sabe bem o que fazer com isso:

Arrastou a poltrona e passou a vassoura sobre o pó que ali havia acumulado.”

É assim que os personagens de Homens e Sucatas vão sobrevivendo, fazendo aquilo que podem na elasticidade enlouquecedora de quem é protagonismo e insignificância. Pois em nossas vidas, cada um enxerga a partir de si e, assim, somos puro esfacelamento.

Esta contística, na maioria das vezes, conta com surpresas. Falar demais dos contos seria privar a leitora, o leitor, de algo excelente: os finais. É um momento de mágica, o momento em que uma frase nos faz sentir que aquela história não fica na página, que ela continua.

Já estou terminando e ainda vejo a corrosão, desde os meninos que se perderam para sempre de si, até os parquinhos abandonados que dormem ao relento. Enferruja-se a máquina de xerox sobre a qual uma moça que fugiria com o circo perdeu a vida, a cela com inocentes presos, a pedra onde adormeceu uma sereia violentada, o bule que serviu os chás que curam e que enlouquecem. Envelhecem as mães, os pais, os seus filhos. A fotografia de um avô amarela. Minas, provavelmente, continua a fornecer o minério. Um neto, um dia, puxa este livro da estante.


***

Homens e sucatas
Betzaida Mata
Ed. Penalux
2016



quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Quando a literatura toma assento - Poltrona 27, de Carlos Herculano Lopes



Por Adriane Garcia


Vá até a rodoviária de Belo Horizonte. Pegue o ônibus que o levará à cidade de Santa Marta, interior de Minas. Sente-se na poltrona 27. Observe a paisagem, ouça a conversa dos passageiros. Vez em quando, puxe assunto com algum, mas cuidado com o que vai dizer, pode ser que seja indiscreto. E se você está há tanto tempo na vida urbana, que mal pode descrever para seus filhos uma vida onde se ouve o barulho dos sapos, dos grilos; onde já ficou tão longe o perigo das cobras, onde a luta contra a natureza parece ter sido resolvida, pelo menos quando você liga seu ar-condicionado, tome conhecimento de que ainda existe um mundo rural, um mundo que convive de forma real, e não virtualmente, com a vida e a morte daquilo que aqui na metrópole vem à nossa mesa, tudo embalado e, na melhor hipótese, asséptico.

Ainda assim, seria outra viagem, a sua. Não seria a viagem de Carlinhos, o protagonista de Poltrona 27, romance de Carlos Herculano Lopes. E eis a supremacia dos livros. É que a nossa viagem, ainda que rica, não seria a viagem do autor. De maneira que para ganharmos a outra viagem, ainda tem que ser o outro a dá-la a nós, pois tanto de nós já temos, mas é esse outro, para o bem e para o mal, que se nos acrescenta. Esse o papel da palavra, perpetuar o vivido, transformar a memória, a ponto de nos oferecer um mundo que em tanto não é lembrado, mas imaginado. Transmitir de um ser humano ao outro, de um tempo ao outro, o que só a palavra poderia. Somente Carlinhos seria capaz de nos dar este caminho que ele faz frequentemente, entre o apartamento na área urbana de Belo Horizonte e a cidade do interior de Minas, onde cuida de sua fazenda, plantações e bichos. No trajeto, este hábito mineiro em que talvez se inicie nossa boa mania de hospitalidade: prosear. É pela palavra que mostramos ao outro que ele é digno de nosso interesse.

Carlos Herculano Lopes transforma em literatura, com simplicidade na linguagem, o passado e o presente que habitam o caminho. Poltrona 27 vai dos dramas dos passageiros à origem da cidade de Santa Marta; da mineração ao desencaixe do homem urbano, sem raízes; da rotina na perigosa BR-381 à incógnita de cada destino que toma assento nos ônibus; da busca da história pessoal de sua mãe à narrativa que compõe um dos retalhos da identidade do lugar. Com um narrador que apenas se preocupa em contar, pouco se importando se o que relata cabe em padrões politicamente corretos, Carlos Herculano Lopes nos fará esquecer que o que temos nas mãos é um livro e nos colocará em outro cenário. Fim das contas, sem alarde – Carlos Herculano Lopes não é autor que escreve gritando – entristecemo-nos, revoltamo-nos, associamos as próprias vivências, ou as de quem conhecemos, àquelas histórias; reconhecemos nosso mundo, porque nossas dores e desejos são universais. Fim das contas, é possível que no último capítulo choremos, depois de tudo. Eu chorei.

Se livro é viagem, Poltrona 27 se aproxima ainda mais desse efeito, pois você pensa que 27 é o número de uma poltrona, mas 27 é o número de um portal.


"Muitos chegaram até a pensar que houvesse acontecido algum acidente. Em seguida, ele e o trocador, sem darem explicações, desceram apressados, para minutos depois voltarem, todos orgulhosos, segurando pelo rabo um tatu-canastra que estava tentando subir em um barranco no lado esquerdo da estrada. De tão gordo, não havia conseguido. Perguntaram se alguém tinha um saco. Uma mulher disse que sim; jogaram-no lá dentro e prosseguimos a viagem, com o bicho se contorcendo. Aquele, com toda a certeza, iria para a panela." 

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Poltrona 27
Autor: Carlos Herculano Lopes
Editora Record, RJ, 2011

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Memória da Bananeira, romance excelente de Isadora Krieger






Por Adriane Garcia



    Andei-me às voltas com um romance delicioso, admirável e exigente. O romance de Isadora Krieger, Memória da Bananeira (ed. Carniceria Livros, 2014). Exigente porque não estamos habituados às quebras de formas, a nos confrontarmos com os textos que fogem do usual. Delicioso porque vale cada linha, sentimo-nos num jogo, é um livro que não duvida da inteligência e da curiosidade do leitor. Nele, a autora não briga com as palavras, torna-as aliadas, valendo-se desde onomatopeias e interjeições  a vocábulos de internautas e receita de bolo. Justamente suas experimentações de forma nos levam para um terreno do estranhamento de leitura e requer um familiarizar-se no percurso. Um romance sobretudo criativo, cheio de surpresas, onde as descobertas se fazem aos poucos, até que descubramos que somos, em algum momento da vida, todos aqueles personagens de nomes compostos, grafados com letras maiúsculas, entidades ontológicas, tipos humanos de nosso caleidoscópio interior, tão repleto.

    Na obra, sempre sobre os olhares espirituais de Belzebu-Te-Ama e Belezura Também (princípio yin-yang nos regendo), Gioconda Lívida de Existência troca cartas com Genésio do Peito Genuíno, um "casal" discutindo uma relação que não é só a do casal, mas também a relação de ambos com a vida, seus sonhos, suas desistências, resignações, escolhas, medos, o fardo da memória. O tom é marcado pelo humor (gargalhei muitas vezes), pela ironia e por uma grande compaixão diante da condição humana. Compaixão que Isadora Krieger em nenhum momento transforma em piedade tola, trazendo mesmo passagens duras sobre um entendimento de humanidade. A Bananeira, esta reprodutora de novos bananas, a incansável fábrica de erros.

    "Genésio,

    Não sejas tolo. Num banana não há nada além de podridão. Um banana apodrece tudo, absolutamente tudo. Comê-lo para quê? Para ganhar furúnculos na bunda? Para receber pestes no sítio? Meu querido, dá um passeio na Cidade das Crianças Marmanjas, um passeiozinho basta, verás somente a multiplicação do estrago dos primeiros bananas. E não importa a pequena forma e a grande causa do nosso apodrecimento, nós fracassamos há muito tempo, emporcalhamos tudo, até o invisível. Portanto, meu querido, seria uma idiotice descomunal tentar encontrar A Criança que Avoa, viva."


    Isadora tece um livro que, contando uma história epistolar, critica os valores de nossa sociedade; mais, critica os valores de nossa civilização, expõe-nos fragilidades individuais e coletivas. Fim das contas, o desejo maior é a realização do amor, território de uma memória de medo, cravejada por tanto fracasso. Em determinado momento da leitura, foi-me impossível não pensar sobre o amor em Freud, para quem a pulsão instintiva levava o indivíduo a esse sentimento, que seria uma forma de realização natural humana, fruto da procura da compatibilidade no outro para poder se exercer. Amar um reflexo, amar um que me faça encontrar  a mim, amar-me. Toda a dificuldade de equacionar diferenças e os enganos dos encontros. Mas também, ah, bênção e maldição!, o amor como uma ordem interior.

    "amor, grande coisa o amor, duas orelhas na sopa, amor, uma escolinha em chamas, amor, uma catedral de lama, amor, benevolente, salvador, alto e justíssimo amor, uma vez discursei a favor de um linchamento e babei a palavra amor, ah, amor, e do dia que brincaste com um cão, tu te lembras? (...)"

    Genésio procura A Criança que Avoa, e sabe que estar morto (ser visitado pela Madama) é não encontrá-la nunca mais.
  A Daminha de Unha Francesinha, dia após dia, constrói sua memória de fiascos, numa vida amorosa de superficialidade desesperada.
   A Vizinha que Não Existe irrompe para existir, com sua vida sexual ativa, que Gioconda ouve, discretamente, quase como se não lhe interessasse.
  O Vizinho que Igualmente É triste, com sua britadeira, pode apenas estar esperando por alguém que o faça menos triste ou, talvez o mais triste seja o outro que o vê.
   A rádio Vai Saber O Que Acontece na Cabeça do Outro dá as notícias do mundo exterior, que continua na mesma, construindo pontos para a fuga.
   Gioconda Lívida de Existência refugiou-se num sítio, com suas galinhas, cães, bichos. Enfrenta cotidianamente a decisão de afastar-se das relações humanas muito próximas, afinal a memória da bananeira (matriz) é dolorida.


  Mas vamos lá, Memória da Bananeira não é um livro sobre desistência. É um livro sobre coragem.

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- Isadora Krieger é poeta e escritora. Nasceu em Balneário Camboriú, Santa Catarina, mas mudou-se para São Paulo em 1994 e desde então permaneceu na capital paulista. É idealizadora e produtora do Cabaret Revoltaire, projeto em atividade e aberto a experimentações artísticas diversas, passando pela pintura com modelo vivo, leituras de poesias, performances e música. Em 2014, publicou os livros O Gosto da Cabeça na coleção "Poesia Menor", pela publicações Iara e Caráter Anal na antologia "Boca Santa", publicada pelo selo Carniceria Livros. Memória da Bananeira é o seu primeiro romance.



    







quarta-feira, 17 de agosto de 2016

O bebezinho da velhinha - Silvana de Menezes



Por Adriane Garcia


Você conhece O bebezinho da velhinha? Se não conhece, tem que conhecer. É destes livros infantis que crianças amam e adultos adoram!

Escrito e ilustrado por Silvana de Menezes, ter este livro em mãos vai lhe mostrar a total sintonia entre texto e imagem. A história? Uma linda viagem amorosa, curiosa, ao segredo da velhinha que, dia sim, dia não, ia às compras, na cidade pequena, para cuidar das necessidades de seu misterioso bebê, jamais visto. As imagens? Ah, passeio de alumbramento por ilustrações monocromáticas tão criativas, quanto bonitas e surpreendentes, ocupando páginas largas inteiras.

Dona Serafina, a velhinha de 90 anos e óculos fundo de garrafa, tinha um bebê do qual as pessoas sabiam “só por ouvir dizer”. Não bastasse, era sempre acompanhada por seu fiel cãozinho de três pernas, Melzinho.

Todo mundo estranhava, mas ninguém fazia nada.
Podia ser um delírio, coitadinha.
E estando sempre tão alegrinha por cuidar de seu nenê, fosse ele de verdade ou ficção, era justo voltá-la à razão?
De tão velhinha, dona Serafina era vista como uma criança.
Foi então consenso entre todos deixá-la em paz com seus devaneios, afinal, o bebezinho podia ser o amigo invisível dela.”

Porém um dia, cadê, Dona Serafina? Some, simplesmente não aparece mais para as compras.
É então que pessoas da comunidade passam a procurá-la. E a leitora e o leitor também.

O final é prenhe de humanidade e reflexão sobre o amor.

Recentemente fiquei sabendo que foi traduzido na China e que vai encantar também as crianças de lá. Fiquei feliz. O mundo está mais é precisando de coisa boa.

* * *

O Bebezinho da velhinha
Silvana Menezes
Editora Cortez

2014

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

História da chuva – de Carlos Henrique Schroeder




Confesso que quando soube da morte de Arthur, num primeiro momento, de mesquinhez absoluta, fiquei feliz; pois, quando os bons se vão, sobra espaço para os ratos.”

Quando a apresentação terminou, levantaram-se e abraçaram Arthur. Estavam chorando, era possível ver as lágrimas despencando. Não disseram nada, não eram bons nisso, em expressar sentimentos. Eram gente do campo, acostumados com a natureza, que tem suas regras próprias, não humanas. Acostumados a não ter com quem dividir suas angústias, pois para eles a “vida era assim, e pronto”, não adiantava externar. O psicanalista do campo é a enxada, o arado.”

Ser escritor é ser rancor.”


Uma vez um professor de teatro brincou que no meio das peças ruins pensávamos: “ainda não acabou?” e que no final das boas inquiríamos: “mas já acabou?”, independente da duração das peças.

Terminei a leitura de História da chuva com aquela vontade que sentimos lendo um bom romance, a de adiar o final. Confesso que mais para o fim economizei, queria ler de uma só vez, mas, ao mesmo tempo, queria aquelas companhias se estendendo. Estava em viagem e aproveitei para dividir em “um pouco na ida, um pouco na volta”. Quando terminei, emocionada, pois àquela altura já tinha o narrador personagem como meu conhecido, fechei o livro, mas ainda fiquei um bom tempo pensando no narrador, em Arthur, Lauro, Melissa, aquele cenário de chuvas e rios, uma melancolia lacrimosa, portanto molhada, atravessando as existências.

Partindo da morte de Arthur, importante manipulador e dramaturgo do teatro de bonecos, após encontrado seu corpo boiando nas enchentes da região do Vale do Itajaí – quando diversas cidades se encontravam debaixo d'água – Schroeder nos oferece uma trama que prende do início ao fim. A maneira como o autor escolhe nos dar esta história, misto de romance, relato jornalístico, ensaio, faz com que, mesmo sendo um livro com muitas informações, isso não atrapalhe de forma alguma a fluência do texto. Ao contrário, grande riqueza de História da chuva é também poder passear pela história do teatro de bonecos no Brasil, especificamente em Minas Gerais (onde encontramos o magistral Grupo Giramundo, de Álvaro Apocalipse, e outros) e em Santa Catarina, onde Schroeder nos leva ao GEFA – Grupo Extemporâneo de Formas Animadas.

Escritor desesperado e confesso, homônimo do autor, dono de pequena editora num país que não lê, o narrador pretende escrever sobre Arthur e o GEFA, na esperança de “emplacar um ensaio em alguma grande revista.” Suas reflexões sobre meio artístico e literário são ácidas e impiedosas, assim como tampouco poupa a si mesmo. As páginas ainda são preenchidas de humor, tragédias e reviravoltas, numa narrativa não linear, mas que se encontra perfeitamente.

De forma criativa, em História da chuva, assistimos até mesmo a uma peça de teatro, e rimos; e, quando as cortinas se fecham, ficamos chocados. Reconhecemos a angústia do narrador, andamos por regiões rurais do sul do país e frequentamos um pouco suas gentes; conhecemos o ciúme doentio de Melissa, reconhecemos a precariedade de se fazer arte no Brasil, a incerteza das relações. Por algum tempo nos esquecemos dos alagamentos externos, mergulhados nos rios que somos. Por fim, a reflexão profunda, diante das águas que nosso narrador contempla. É com ele, em silêncio, que pensamos juntos: Arthur morre afogado, mas era exímio nadador. Parece o mesmo rio, o do início e o do fim, mas é impressão. O rio, sabemos de Heráclito, ignora permanência, e nós já não somos os mesmos.

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História da Chuva
Carlos Henrique Schroeder
Romance
Editora Record