domingo, 30 de agosto de 2015

Corpos em marcha, de Simone de Andrade Neves


Por Adriane Garcia


Numa parede a mancha branca
desenha a lembrança da armadura.


   No meu hábito ansioso por ler não sei quantos livros ao mesmo tempo, interrompi a leitura de Corpos em Marcha, de Simone de Andrade Neves e durante a semana fui retomá-la. Mas sabe aqueles livros que a gente não deve partir a leitura? Pois é. Eu comecei novamente para ir num fôlego só.   E lê-lo duas vezes é, sem dúvida alguma, ganhar.
   À medida que prosseguia ia ficando fascinada com o movimento em que me vi entrando, com o perceber a grande habilidade desta poeta que nos convida não só a uma viagem, mas a uma passada. Tudo em Corpos em marcha é coerente e coeso, tudo “fecha”, sem sequer um lugar-comum. Simone de Andrade Neves é poeta das mais especiais no que tange ao seu tratamento da palavra e dos temas.
   A marcha, sabemos, é um movimento de passos ordenados, com ritmo contínuo onde as mudanças de ordem servem apenas para marcar novo ritmo contínuo. Numa marcha se obedece, numa marcha ruma-se a um fim; vários andando juntos e parecendo um só. Analogias com soldados cumprindo um destino, o movimento que lhes é preciso, do centro de si, para avançar; pois recuar, ainda é marcha.
   Então, comecei a marchar numa cidade do interior, num cenário de fazendas e solo de terra e folhas secas; noutras vezes em lodo e húmus; acompanhei-a no sol que entrava nas janelas e fui com ela até a casa de erva-mate, vi as pás modificarem a matéria (morte?), olhei embaixo dos móveis antigos, vi fósseis de insetos, matei bois e porcos e lhes comi a carne, procurei um brinquedo que caiu numa fresta, fui ao enterro do menino enrolado em morim… fiz isso tudo em velocidade contínua, ditada pela poeta, e ainda quando nossa marcha se deu em mudança abrupta era apenas novo comando para novamente entrarmos em continuidade. Na maioria das vezes, a marcha foi suave, bucólica, em algum momento levemente nostálgica, sem que o livro deixasse em página alguma de lidar com a força, ou não haveria marcha. Paradoxo que esta poeta trabalha com maestria.
   Corpos em marcha é um livro profundo, extremamente bem escrito, sem desperdício algum e também sem nenhuma falta ao que se pretende. Podemos chamar isso de exatidão. Fala de nossa condição de seres finitos, de nossas transformações inevitáveis, da nossa crueldade e sofrimentos tão naturais, do papel da memória e da imaginação na recriação do que já perdemos.
   O talento de Simone de Andrade Neves é que sua poesia jamais é óbvia, lida com o modo mais difícil de fazer e consegue não cair num hermetismo que retiraria nossa chance de comunicação. Entre violências de uma condição predadora, num mundo predador, a complexidade de amar, apesar de e como parte de.

Dentro do sonho
ouço o trotar de um cavalo
e oco de rosetas.
É ele!
paramento e montaria,
no amparo de um arreio de prata
passando a vila em revista

absorto em ofício sacerdotal,
na vigília,
ignora
a disritmia do meu coração.

   A descrição dos lugares, a menção dos objetos serve à Simone de Andrade Neves para pontuar o que realmente importa: essência, seiva, essa palavra que lhe é cara. Enquanto há vida, ávida, porque é no vivo que a morte é vingada.

Tracionada a ferrugem dos ferrolhos
reage ao sol
e rescende o cheiro dos carvalhos
no escorrer das ocras:
o ferro a menstruar no tempo.

Transversa
a luz revela o desenho das teias:
colcha prateada de neurônios
esses nervos da vida.

Firmes ali sem mais estar
mãos invisíveis no ensaio do tear.

   Um desnudamento do mundo e das aparências. A poeta entende o que o mundo é. Olha ampulhetas, procura o homem que está sob o homem e não encontra, pois a poesia não existe pra responder, mas para nos ajudar a suportar a marcha ao inexorável.
   Para não copiar o livro todo, que é um primor do início ao fim, deixo aqui esta iluminação de nossa Simone de Andrade Neves:

O tempo abranda as coisas

O Sol
fez branco
o terço rosa
deixado
sobre o túmulo.

   Um projeto extremamente bem realizado, que emociona e encanta, pelo conteúdo e pela forma. Uma sorte poder lê-lo e tê-lo entre livros queridos.




Livro:
Corpos em marcha
Simone de Andrade Neves
editora Scriptum
2015



terça-feira, 18 de agosto de 2015

Xadrez, de Ana Elisa Ribeiro: sorte no jogo, sorte no amor.



por Adriane Garcia


    De repente reservei-me o momento desta partida. Vinha de um livro denso de entrevistas, saudosa já de ler poemas, e há tempos queria me dedicar a uma segunda leitura de Xadrez, da poeta mineira Ana Elisa Ribeiro. Foi a poeta que avançou primeiro, com esta epígrafe de Michel de Certeau: “A memória dos lances antigos é essencial a toda partida de xadrez.”
     A delícia da noite foi poder acompanhar a trajetória deste jogo de tabuleiro, que já se desenha na própria edição, na diagramação do livro, na brincadeira das páginas pretas que abrem seções, nos subtítulos nas casas brancas. E então, de começo, senti que era preciso mesmo me posicionar para o jogo; primeiro, a posição de espectadora; depois, a posição de quem rememorava jogadas próprias: eu, jogadora. Este o momento em que o leitor acompanhará os poemas que compõem Xadrez com a respiração atenta de quem quer chegar ao final do torneio para saber, afinal, quem é que ganha.

A terrível sensação

do absurdo
de viver
a mesma coisa
em outra
posição
no tempo.

Fico pensando:
Deus é repetitivo.
Deus curte disco arranhado.
Deus volta a fita.
Deus faz becape.
Deus é campeão de ioiô.
Deus produz gente burra.
Deus joga dados.
Deus é diretor de cinema.
Deus ensaia balé.
Deus é maestro severo.
Deus é mesmo só pai.

    O livro de Ana Elisa prende. Prende porque emociona, porque surpreende e porque este é o jogo no qual, fim das contas, todos queremos ganhar: o amor.
    Um livro sobre a relação amorosa e que não resvala em mera confidência, que não cai nas palavras melífluas – apesar da autora brincar exatamente com esta palavra em dois poemas – que não repete fórmulas gastas.

Os meus cinco

ou seis –
sentidos
estão parados
na superfície dos
seus lábios

deixa eu tirar
seus óculos
e olhar
seu dia
inteiro

minha vida
está
partida –
ao meio:

um breu
sem graça

e depois
que você
veio.

    No xadrez, o jogo, valem a inteligência, a astúcia, a paciência, a prudência. Tudo combinado em estratégia. No Xadrez de Ana Elisa Ribeiro, a estratégia pode ser tantas vezes para maltratar o amor e, após tanta prática em resultados fracassados, também é preciso sorte. Mas engana-se quem pensa que as partidas deste Xadrez são jogadas num ambiente cinza, chuvoso e escuro. Apesar dos momentos em que perder é tão desesperador, há algo desta poesia que coloca a enxadrista sob o Sol. Penso que seja a força e a forma. Ana Elisa é uma poeta de presença forte, cuja força de personalidade se reflete nos seus poemas, sabe rir das partidas que perde, por isso, muitas vezes seu humor ácido, sua ironia fina. Quanto à forma, sua voz traz sempre os poemas limpos, de linguagem direta, habitados por palavras de nosso universo contemporâneo, perfeitamente ritmados e, especificamente neste livro, alguns com algo até ceciliano na musicalidade, utilizando poucas rimas vez ou outra, onde o poema só se enriquece. Ana Elisa sabe exatamente onde e quando colocar o elemento lírico e o antilírico. Em Xadrez seus versos “livres” estão habilmente comandados.

Luxo

Veja que luxo
namorar uma moça
cuja casa tem uma roseira na entrada.

Só por isso
não podes mais abandoná-la.
Onde mais vais ver algo assim?
Uma roseira verdadeira!

Cabe perguntar à moça
se é ela mesma quem cuida,
rega e drena.

Se for, não podes largá-la,
Se vês a roseira plena.

    Amor belo e desmedido, intimidade de casal, amor filial, amor paterno, esperas, masturbação, descrença nas partidas, derrotas, erotismo de uma elegância deliciosa, abandono, infidelidade, ciúme, erro, tristeza, esperança, angústia, desejo, memória, descontrole: o rico tabuleiro deste Xadrez.
    Condição humana, eu e o outro, você e o outro. Após tantos movimentos e até mesmo a conquista do amor, resta ainda o xeque-mate, mas este é sempre dado pela morte. E é num metalinguístico o único momento do jogo em que a poeta pede clemência:

Extrema

pedi a Deus
uma meia dúzia
de palavras
com que
brincar
antes
de terminar
sem vida
e sem
o que
dizer

  
  Um livro muito especial.





XADREZ
Autor: RIBEIRO, ANA ELISA
Idioma: PORTUGUÊS
Editora: SCRIPTUM
Assunto: Literatura Nacional - Poesia
Edição: 1
Ano: 2015