quinta-feira, 30 de julho de 2015

Um dia de cada vez – A poesia de Airton Souza




Um tempo sem flores
e de muita solidão
pra (a) colher.

Levei o livro Manhã Cerzida, de Airton Souza, para viagem. Comecei lendo no aeroporto. Prossegui no avião. Quando já em Recife, aproveitava o tempo em que Tadeu Sarmento escrevia ou lia, para sentir mais uns poemas, porque é isso, a poesia que Airton Souza vê, captura e nos mostra é toda para sentir. A apreensão de Manhã Cerzida dá-se pelos poros, ou pela visão, pela temperatura de um dia que começa, de um sol a pino, de um mormaço insistente e tedioso ou de um frio que nos toma a noite. É uma poesia localizada no tempo, mas não do tempo elástico, do tempo eterno ou do tempo de uma vida inteira; é, antes, a poesia localizada entre o abrir e o fechar de nossos olhos.

tenho nas manhãs
o cheiro das magnólias

atravesso insaciável
algumas ruas desconhecidas

a carne afoita
tem fome
de afoiçar a esparramada
geografia do mundo

ganho o rumo
com a língua pesando a alma

esfalfado, não sei das raízes, das folhas
das árvores
só dos frutos
que apodrecem meu insano agora
esgueirados pelas horas

Bem ritmados, na maioria das vezes de versos curtos, os poemas de Manhã Cerzida contam nossa angústia de despertar mais um dia e também nossa esperança por este mesmo motivo. Conta nosso alívio por dormir e nossa melancolia pela chegada do escuro, mas mostra também que só a noite nos salva do dia. E é neste espaço temporal que vamos nos identificando com um tema que não poderia ser mais universal, pois que Airton Souza desnuda esse nosso “comum”, onde todos nos igualamos até nosso derradeiro sono.

Traz tuas chagas
que tentaremos curar
indo sempre ao fim das tardes

Manhã Cerzida situa-se nessas temáticas que trabalham com alguma sabedoria, vamos encontrando sussurrados modos não de fazer, mas de aceitar; modos não de aceitar, mas de nos rebelarmos; e não é para nos rebelarmos simplesmente, é para recriarmos sentidos. Um tanto de Heidegger, sem citação alguma, mas ali a morte e nenhuma explicação. Ali o lapso de tempo para nos inventarmos. Sem citação alguma, Sartre e este caminho onde só nos cabe existir.

A flor
não sabe
o que são os dias

não aprendeu a língua-
gem do tempo

mastiga
sem pressa: o silêncio
& não abandona a rua
porque sabe da importância
das cores.


Não conhecer o amanhã, angústia suprema, nem mesmo saber desta hora, do que nela fruiremos. Airton Souza nos leva a este passeio fugaz: vida, soma de minutos, sem manual de instruções, e tantas vezes sem companhia.

a manhã
cospe angústia
retesa as horas

respira esperança
& não come a incerteza

engasga-se
com o desconhecido
que é só depois de amanhã.


Em Manhã Cerzida a única companheira da qual se tem certeza que estará presente é a solidão. A imagem é sempre a de uma estrada, um caminho e um, apenas um caminhante. Não que o poeta tenha exterminado o outro ou a sua existência, mas está a comunicar justamente o desejo de dividir com alguém isto que novamente ganhamos no dia seguinte: uma manhã.

Trancafiemos as portas e janelas
com cuidado meu amor

com o cuidado igual
ao que zelamos de um
doente implorando a vida

receio a noite
porque ela tem uma mania estranha
de aprofundar os cômodos

sem alarde
passe os ferrolhos
com cautela

a noite é um medo faminto

deixei uma bandeira branca
no desejo de fixar no alpendre
nas primeiras horas de amanhã

não afrontaremos a penumbra
a nossa indigência
requer manhãs


Da poesia que olha para o que está ali desde que nascemos e indaga e, como toda boa poesia, não responde. E gruda em nós a sua indagação.


Carpe diem.


Poeta e professor paraense, de Marabá. Licenciado em História e Letras, pós-graduado em Metodologia da História, é colunista na revista Foco Carajás e escreve crônicas para o jornal Opinião. Tem participação em diversas antologias, além de ser um grande movimentador cultural pela literatura.
Com este livro Manhã Cerzida, Airton Souza foi agraciado com o IV Premio Proex  de Arte e Cultura, 2014.

Manhã Cerzida é uma publicação da editora Giostri (SP , 2015).

domingo, 12 de julho de 2015

Sob o signo do sangue – Carla Diacov em Amanhã alguém morre no samba



por Adriane Garcia



Mostrarei agora quais são algumas espécies de feitiçarias, de modo que os exemplos abram o caminho para a compreensão de todo o tema. Destas, a primeira é o sangue menstrual, do qual consideraremos o valor de seu poder na feitiçaria.” Cornelius Agrippa, Filosofia Oculta, Século XV.



    Na capa branca, pintada de um vermelho rubro, a menina manca, a menina escorrendo as pernas. O vestido festivo, as mangas em estilo “boneca” e a premonição: Amanhã alguém morre no samba. Carla Diacov leu a mensagem profética no escoadouro da menstruação e é sob a perspectiva do sangue, do ciclo findável somente com a morte – pois que tanto a menarca quanto o climatério e a menopausa definitiva não seriam a solução da loucura – que nascerá sua poesia, onde a fecundação se dá exatamente do não fecundo, da frustração, do exercício de morrer antes mesmo da infância e recomeçar, novamente sendo-se:

uma mulher no fim do mundo do fim,
com grãos de areia,
escreve mensagens em garrafas vazias
jogando-as ao mar.
vazias.
minhas ideias pescam a essas garrafas
com anzóis e fisgas do meu mais profundo horror:
sê-la.”

    Uma poética profundamente ligada ao signo e à ressignificação própria. Para ler Carla Diacov é necessário um leitor disposto a estudar um novo dicionário, a refazer com inteligência e intuição a simbologia da autora. Com disposição para estar vivo, a ler coparticipando (atributos essenciais de leitura e de apreciação de linguagens), Amanhã alguém morre no samba vai se revelar em poemas fortes – como o são as verdades – e de intensa sensibilidade.

pelo gesto pela roupa pela chama
não me emboco
troco os santos de lugar
o fogão corre a sala faz
o quarto mais marmita
não bato com ninguém
daí faltar you na imagem
sou suja daí faltar you
eu nunca mais vou escrever
sou suja o fogão corre deixo
os pés no tapetinho da manhã
acordo com cara de mina de carvão
escrava dessa criança
sou suja a mina do carvão
não bato com ninguém e o fogão corre
pelo gesto pela lomba pela cintura eu
nunca mais vou chorar dentro das mãos

se queimar o dedo lambe
conselho de mãe daí faltar you
ou esfrega na franja, criança

    Neste dicionário, que à medida que lemos vamos clareando, cavalo é sempre um homem, antena é o sensível, cão é ela, eu lírico, ovo é possibilidade irrealizada, criança é carência, pássaro é amor que jamais fica... Não se trata de metáfora que acontece num poema em específico, mas de códigos que se repetem no decorrer do livro e que à primeira vista estão desconectados ou intrusos. O aparentemente hermético de alguns versos se desnuda, pois Carla Diacov está renomeando sentimentos e coisas. Sim, coisas, afinal em Amanhã alguém morre no samba, a poesia acontece em dois cenários possíveis: ora no corpo (carne, ossos, cabelos, útero, sangue, vísceras…), ora nos objetos circundantes do espaço mais imediato (mesa, faca, maçã, alho, creme…). Por acontecer neste microcosmo, há um ritmo de claustrofobia onde raramente há espaço de estrofes. O comum é o bloco único da urgência e do grito.


me visto de alçapão e choro
mas estou pelada
mas estou calva
estou feia e fútil
basta
basta quando que sou o alçapão
sou possuída e inquilina
céus
eu sou o alçapão
espia:
o diabo é minha carne pênsil.”

    Degradação do sangue ruim, degeneração, perversão, tragédia diária de não se encontrar saída para o próprio ciclo da vida, a precariedade do estar-se aprisionado ao desejo sexual, a pulsão violenta. Amanhã alguém morre no samba é um livro vermelho como os sinais de trânsito que avisam para os atropelamentos, como as luzes das ambulâncias levando os feridos, como as poças de sangue deixadas pelos crimes passionais.

Menstruada.
Feminina e nua.
E em nada suave.

    Em Das maravilhosas virtudes de algumas espécies de feitiçarias, Cornelius Agrippa avisa que para o sangue menstrual alcançar efeitos benéficos, é preciso que tudo seja feito antes do nascer do Sol. Carla Diacov sabia. Por isso Amanhã alguém morre no samba é destes livros escritos na nossa eterna noite, geralmente na hora em que os suicidas decidem viver mais um dia.


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Amanhã alguém morre no samba
Autora: Carla Diacov
Editora: Douda Correria
2015
Nº Páginas: 183