domingo, 6 de abril de 2014

Akira Yamasaki: um excelente poeta ruim



    Há uns dias, terminei de ler o livro do poeta Akira Yamasaki, cujo título "bentevi, itaim” é um voo e um rastejo. Voo porque há leveza de pássaro, rastejo porque nos traz realidades duras com a legitimidade de quem de fato as conhece, do chão.
    Sua poesia traz aquilo que faz um poema ser reconhecido como tal, ou seja, há ancoragem na tradição, nos poetas que nos precederam e ensinaram; mas não é submissa, nem cópia, e traz também o novo, a inserção dos elementos tão contemporâneos ao seu/nosso tempo, linguagem, vivência, cenário.
    Poesia, antes de tudo, de afeto. Poesia de crítica social. Poesia do cotidiano.
    Bentevi, itaim, antes preparado numa ação entre amigos e sua esposa Sueli Kimura que queriam reunir os poemas e fazer-lhe surpresa, acaba por lhe ser comunicado, a fim de que participasse do processo. Desta forma, o próprio projeto é um projeto de amor, amizade e gratidão. Aliás, gratidão é sem dúvida o sentimento que mais perpassa a poesia deste poeta.
    Sua visão de ser humano, de mundo e de poeta alcançam uma coerência enorme. Já no princípio, no poema de abertura, “meu caminho”, adverte-nos sobre sua/nossa única possibilidade: seguir.     Não é uma opção, mas uma ordenação cósmica, independente da força de superar, Akira Yamasaki nos fala da vida como um imperativo.

“sigo o meu caminho
é mais forte que eu
então apenas sigo.”

    Sim, segue. E nossos passos vão juntos percorrer Itaim (“no itaim paulista/cai a noite gelada), essa região periférica de São Paulo e conhecer um tanto de suas ruas, seus bares, suas casas e, principalmente, seus personagens. A poesia de Akira é uma poesia recheada de pessoas e de Brasil (“seis gritos de socorro/rasgam meu pobre itaim"), e não abre mão de lirismo, ainda que trazendo a linguagem local infiltrada da realidade de que fala. Mérito que alcança do início ao fim. Neste, “gás da nitro”, a visão do todo, o seu lugar, como vastidão universal e habitada.

“... vagam lumes na escuridão
gás da nitro peidando firme
abocanhando casas e estrelas
miséria, porra
a classe operária, porra

do alto da pedroso
edsinho, o gordo
duas lágrimas furtivas
inundam são miguel.”

Em, “batendo laje”, o cimento, a cola é a amizade.

“obrigado, claudionor
kenji e os dois andrés
scala, careca e banguinha
obrigado ao seu mané
e ao alemão também
sem esquecer o josé
a alaíde pra feijoada
e a dona maria pelo café.”

    Noutros momentos, os poemas acabam por nos mostrar a forte inserção e engajamento do poeta nos movimentos culturais de sua comunidade. Sua modéstia conhecida e o agradecimento constante aos outros poetas da região. No poema “bom poeta ruim”, como se define, após citar vários poetas contemporâneos e vizinhos, conclui:

“tantos são poetas maiores
se tanto, sou assim, assim
mas só meus versos clareiam
a severa escuridão de mim”

    Retrato de um artista muito autobiográfico, mas sem jamais cair no simples confessionalismo despejado e sem forma, Akira Yamasaki nos confronta com as dores de um sistema social perverso, de consumismo, compra, venda, abandono e violência, que ele enxerga todo tempo, pois que está na sua frente. A poesia e a vida de Akira é uma resistência declarada:

“senda

ainda que eu só tenha
olhos cegos pela venda
e só possa seguir você
não sigo por sua senda

ainda que eu só tenha
para o amor e contendas
mãos nuas e desarmadas
de ouro, poder e rendas

ainda que a fome torture
e a sua mão me estenda
e me ofereça a sua sopa
não durmo em sua tenda

e tô cagando muito pra
placa de compra e venda
cagando sim, quer saber?
Pros heróis da sua lenda”

    A influência de sua ancestralidade, oriental, aparece em versos de muito lirismo, muito suaves, onde a observação atenta e paciente constrói jardins.

“O jardim de hideko (1)

no jardim de hideko
equilibram-se colibris
cuitelicópteros”

Ou:

“o jardim de hideko (4)

da porta da cozinha
hideko contempla
o inverno na cerejeira

os olhos distantes
xícara de chá fumegante
nas mãos esquecidas

pesam sobre as flores
silêncios de bentevis
e solidões esmagadas.”

Ou ainda :

“chuva de outono
choveu a tarde inteira
a tarde inteira chorei
sem motivo nenhum
de perda nem dor
apenas chorei
apenas choveu”


    A família, filha, filho, sogra, esposa, pai têm forte presença, como não podia deixar de ser numa poesia em que o afeto é lugar central. A filha, passarinho a voar desde sempre, uma espera de ninho; o filho, uma preocupação por encaminhar; o amor declarado à esposa, no reconhecimento pelo cuidado na manutenção do amor; a admiração pela sogra como um elo de ligação que se preserva entre o poeta e uma terra distante. O Japão, é também um banzo:

“porque fui moldado
no barro de povos primitivos
à imagem e semelhança
de ancestrais navegantes
guerreiros poderosos
guiados por ventos e estrelas
em migrações continentais”

em “origamis

...origamis de grous azuis
na maca de emergência
adormecem nas mãos
do pássaro inquietante”

    Mais, os temas universais: amor, morte (principalmente a morte dos amigos queridos), miséria espiritual e material, dor, fracasso, inadaptação, indignação, resignação e resiliência, o tempo:

“as lembranças doem
como cãimbras”

    A poesia? Claro que Akira fala da poesia. Nele, coincide com a vida. Todo o tempo é dela que está falando. E se não se pode deixar de viver, de seguir, na poesia houve de se escolher o modo:

“desse lugar eu fugi
nas asas da poesia
de tresoitão na mão
fugiu peter micharia”.


    O problema de apresentar “bemtevi, itaim” é não parar de querer reler e copiar os poemas e dá-los mais a conhecer. É uma poesia humaníssima, que sensibiliza profundamente, de um poeta talentoso, que merece ser lido. Um presente para o leitor.

Adriane Garcia