quarta-feira, 31 de julho de 2013

Toda poesia de Paulo Leminski




Paulo Leminski

Toda poesia

É um calhamaço de 424 páginas (Companhia das Letras). Acompanham o avantajado volume a cor laranja fosforescente e letras pretas, como se pintadas a guache, com pincel. Abaixo, o bigode inconfundível. Dentro, a poesia também.
Quem consegue escrever páginas inteiras de crítica azeda à poesia de Leminski (já li, no Rascunho, inclusive), talvez o tenha lido com muito mau humor. Paulo Leminski não deve ser lido com mau humor.
Também, para aqueles que conhecem Leminski superficialmente e acham que ele é aquele poeta dos haicais, outras surpresas: Os haicais não são a maior parte da poesia leminskiana nem podem traduzir o poeta inteiro que Leminski é. A maioria de seus poemas tem tamanho médio e ultrapassa oito versos.
A descoberta neste livro é um poeta denso, profundo (dos mais profundos), interessado pela forma, mas sobretudo, interessado em comunicar sua alma, sua inadequação, nosso ser/estar no mundo. Se sobra alguma brincadeira, alguma irresponsabilidade com a palavra, Leminski pode: a cada vez que brinca, em nove outras vezes prova o seu lirismo doído, irreverente, desassossegado. Conhecê-lo é ouvir a voz de um homem muito especial.
A leitura é fluida e curiosa por quase todo o volume. Cerca de setenta por cento do livro é a reunião de sua obra editada. Ao final, perde-se um tanto da densidade, da coesão e da qualidade à qual a própria leitura nos vinha acostumando, mas aí já não é culpa do poeta, que quando vivo deixou de publicar o que achava impublicável. Infelizmente, não rasgou e aí, sabemos o que acontece com os póstumos. Um poeta sabe o que é sua poesia e o que são somente os seus exercícios, não publica seus exercícios. Mas não podemos julgar sua poesia inteira, de primeiríssima, pelo que não quis trazer a público.
Marco aqui dois dos cerca de duzentos poemas que me tocaram. O primeiro, pela irreverência do poeta, deixando claro que a poesia não deve subserviência a ninguém. O segundo, pela verdade reveladora exemplificada na poesia do grande Leminski.

Merda e ouro

Merda é veneno.
No entanto, não há nada
Que seja mais bonito
Que uma bela cagada.
Cagam ricos, cagam padres,
Cagam reis e cagam fadas.
Não há merda que se compare
À bosta da pessoa amada.

Saudosa amnésia
a um amigo que perdeu a memória

Memória é coisa recente.
Até ontem, quem lembrava?
A coisa veio antes,
Ou, antes, foi a palavra?
Ao perder a lembrança,
Grande coisa não se perde.
Nuvens são sempre brancas.
O mar? Continua verde.